domingo, 17 de agosto de 2008

Anunciar a morte do Senhor

Por Jeffrey Meyers

(leia o original aqui)

Na minha apresentação no Colóquio da Assembléia Geral [da Presbyterian Church of America, N. do T.] sobre os sacramentos, eu argumentei a favor de uma experiência mais alegre e comunitária na Mesa do Senhor. Will Barker deu uma breve e generosa resposta ao meu artigo, sugerindo que há lugar para uma experiência mais solene à Mesa. Ele se baseou na afirmação de Paulo em I Coríntios 11.26, "Pois toda vez que comerdes do pão e beberdes do cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha." Eu creio que a réplica de 10 minutos do Dr. Barker será postada em breve.

Há, aqui, algumas coisas a serem pensadas. Primeiro, eu admito que pode haver ocasião e lugar para uma celebração mais solene e sóbria da Ceia. Dependendo do que tiver acontecido ou estiver acontecendo com a congregação, pode ser apropriado. A igreja pode ter uma celebração mais moderada da Ceia imediatamente após a morte de um membro querido, ou da excomunhão de um irmão ou irmã, ou talvez em qualquer época em que a congregação como um todo precise velar ou arrepender-se de algo. A primeira vez que a igreja de Corinto se reuniu para a Mesa do Senhor depois que a carta de Paulo foi lida para a congregação provavelmente não foi uma experiência muito alegre. Eu não tenho problemas com cultos eucarísticos solenes, celebrados ocasionalmente. Pelo menos uma vez no ano, na quinta-feira da Paixão, a ceia provavelmente deveria ser celebrada assim.

Em segundo lugar, "anunciar a morte do Senhor" não é a mesma coisa que velar a sua morte, ou pior, tentar reviver as circunstâncias da sua morte. "Anunciar a morte do Senhor" pode significar, de duas, uma: Por um lado, pode ser uma referência ao fato de que as Boas Novas da morte de Jesus sejam proclamadas toda vez que comemos do pão e bebemos do cálice. A Santa Ceia é uma atuação pública da aplicação da morte de Jesus ao povo de Deus. O fato de que esta "proclamação" acontece quando comemos do pão e bebemos do cálice significa que não é apenas uma representação ou dramatização da morte de Jesus. Comer e beber não têm como ser consideradas representações simbólicas da morte. Comer e beber estão ligados à vida e ao viver!

A morte de Jesus aconteceu. Está no passado. Nós viemos à Mesa, onde já estão o pão e o vinho. O corpo e o sangue estão separados, o que significa que a morte aconteceu. No sistema sacrificial do Antigo Testamento, o sangue sempre deveria ser separado do corpo da vítima. Nós vimos à Mesa que foi aspergida para nós, porque Jesus já morreu. Nós, agora, colhemos os benefícios da sua morte. A morte de Jesus não pode ser re-dramatizada à Mesa. Nós podemos apenas desfrutar dos resultados da morte de Jesus - seu corpo e sangue dados a nós como alimento. Novamente, é uma mesa, e não um túmulo.

Em terceiro lugar, a outra interpretação de I Coríntios 11.26 é a que eu prefiro. A Ceia do Senhor é uma refeição memorial da aliança. Por meio da Ceia a igreja rememora a morte de Jesus, para o Pai. Compreendida no contexto dos "memoriais" do Antigo Testamento, esta refeição memorial da Nova Aliança é uma oração ritual dramatizada, relembrando a Deus de sua aliança. A Santa Ceia é o rito memorial da Nova Aliança. É o cumprimento de todos os antigos meios que o Senhor instituiu, pelos quais seu povo invocava o seu Nome e dramaticamente o pedia para que se lembrasse de sua aliança. Todos os memoriais da velha ordem estão agora cumpridos e completos (consolidados) em uma única e simples refeição memorial da aliança. Jesus diz: "Fazei isto em memória de mim".

À mesa, nós rememoramos a morte de Jesus. O sentido não é o de nós simplesmente a recordarmos, mas sim de nós relembrarmos a Deus das promessas de sua aliança para conosco. É da nossa ação com relação a Deus. É a nossa prece a Deus, o lembrar-se de Jesus e de manter sua aliança. Nós anunciamos ao Pai a morte do Senhor, pedindo-lhe para que mantenha as suas generosas promessas em Cristo. No caso da Santa Ceia, essa rememoração é um ato da congregação, uma declaração das promessas de Deus. Isso vem à tona nas orações de ação de graças (no grego: eucaristia) e de memorial antes da distribuição e comunhão do pão e do vinho, mas não se limita a elas. De fato, a refeição memorial inteira anuncia a morte de Cristo, como Paulo afirma em I Coríntios 11.26: todas as vezes que comemos do pão e bebemos do cálice, anunciamos a morte de Cristo.

Essa "proclamação" não se limita à oração ou ao partir do pão, mas ainda rememoramos Cristo ao Pai por meio da refeição comunitária. Eis o memorial do sacrifício redentivo de teu Filho, ó Senhor; lembra-te dele e sê generoso para conosco. Tradicionalmente, essas orações sempre incluíram um resumo da vida e da obra de Jesus Cristo. Uma oração eucarística deveria soar algo assim:

É verdadeiramente correto e apropriado que rendamos graças a ti sempre e em todo tempo, ó Senhor, nosso Pai Celeste, Deus Eterno e Todo-poderoso. Mas é especialmente próprio que nós, agora, reunidos diante desta Mesa, rendamos graças a ti pelas tuas generosas promessas em Cristo. Lembra-te, ó Pai, do nascimento humilde de Nosso Senhor, de sua vida santa, de seu sofrimento inocente; e de sua morte e de sua ressurreição e ascenção por nós. Sê fiel em cumprir tua aliança conosco por amor de Jesus, e vem agora alimentar-nos e capacitar-nos para servir o teu Reino. Pelo teu Espírito Santo, faze o corpo e o sangue de Nosso Senhor alimento vivificante para o teu povo; em nome de Jesus nós oramos. Amém.


Uma oração eucarística assim, unida à realização da Santa Ceia, anunciam a morte do Senhor (I Coríntios 11.26) para o Pai. A refeição toda é uma oração dramática, uma afirmação das promessas do Pai pela memória do nascimento, vida, paixão, morte e ressureição de seu Filho por nós.

Tudo isto para dizer que a nossa proclamação da morte do Senhor à Mesa não exige nem implica em uma atmosfera solene, funérea, da Santa Ceia. A morte de Jesus deve ser proclamada com alegria, seja para os outros (como anúncio do Evangelho), seja para o Pai (como memorial da obra de Jesus por nós).

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Presbiterianos & Liturgia, parte 10.

O efeito anti-litúrgico do imediacionismo e do individualismo na moderna soteriologia calvinista norte-americana (2)

Por Jeffrey Meyers

(Continuação da parte 9)
(Leia o original aqui)


Pelo menos um terço das Institutas de Calvino é dedicado à doutrina da igreja (Livro IV). A doutrina de Deus, do homem, de Cristo e da salvação, todas culminam no Corpo místico do qual Cristo é o Cabeça. Essa "alta" teologia eclesiástica pode ser encontrada em todos os reformadores do século XVI (confira AVIS, Paul D. L., The Church in the theology of the reformers. Atlanta: John Knox, 1981) e especialmente na teologia reformada do começo do século XVI (confira a ótima exposição em MACGREGGOR, Geddes. Corpus Christi: the nature of the Church according to the Reformed tradition. Philadelphia: Westminster Press, 1958). É nesta comunidade de carne e osso santos, diálogo oral, rituais materiais e sacramentos físicos que nós nos encontramos com Deus. Calvino avisa:

Portanto, aquele que quer encontrar Cristo, deve primeiro encontrar a Igreja. Como alguém saberia onde estão Cristo e sua fé, se não souber onde estão seus seguidores? Aquele que quer saber alguma coisa de Cristo não deve confiar em si mesmo, ou construir seus próprios caminhos para o céu por sua própria razão, mas deve dirigir-se à Igreja, visitá-la e lá perguntá-lo (...) pois fora da Igreja não há verdade, não há Cristo, não há salvação.

Se isso nos soa estranho ou simplesmente errado, é porque nós fomos infectados com uma mentalidade gnóstica. O Espírito fala através da Noiva (Ap. 22.17). Quando Jesus convoca as sete igrejas a ouvir o Espírito, ele quer que elas ouçam a voz de seu pastor/mensageiro enquanto ele lê a carta que é endereçada a cada uma (Ap., caps. 2 e 3). A primeira parte do Livro IV das Institutas trata "da necessariedade da igreja". Ao falar do material e bem visível corpo dos crentes na terra, Calvino diz:

(...) porque é nossa intenção, agora, discutir a igreja visível, aprendamos do simples nome "mãe" o quão útil, e de fato necessário, é que nós devamos conhecê-la. Pois não há outro modo de se chegar à vida, senão se essa mãe nos conceber em seu útero, nos dar à luz, nos nutrir em seu seio, por fim, a menos que ela nos mantenha sob se cuidado e direção até que, deixando a carne mortal, nos tornemos como os anjos. Nossa fraquea não nos permite sermos dispensados de sua escola até que tenhamos sido alunos por toda a vida. Além disso, longe de seu seio ninguém pode ter esperança de qualquer perdão de pecados, ou de qualquer salvação (Institutas, IV.I.4).

É de se notar que Calvino não está falando de uma igreja invisível, "espiritual", mas da própria comunidade física dos crentes, que se reunem para servirem-se uns aos outros se serem os meios pelos quais Deus serve, pelo falar, o ouvir, o cantar e o orar por e em favor uns dos outros. De certa forma, a igreja é o mais preeminente dos meios de graça (confira LEITHART, Peter. Against "Christianity": for the Church; bem como o seu Sociology of infant baptism, dos quais ambos se encontram em Biblical Horizons: Christendom Essays, n. 100, dez. 1997, pp. 29-50 e 86-106).

Então por que tantos têm medo disso? Uma das idéias mais nocivas já lançadas no cristianismo reformado é essa noção de que Deus normalmente comunica a sua presença imediatamente [no sentido de "sem mediadores", N. do T.] à alma do homem, desviando-se de todos os meios externos, físicos. Sim, é verdade, e é parte do ideário da teologia reformada, que o Senhor é livre para operar fora dos meios constituídos, em casos extraordinários. Mas isso significa apenas que o Senhor ordinariamente trabalha da forma como prometeu, através dos instrumentos que ele mesmo apontou para comunicar sua graça, quais sejam, pela instrumentalidade das palavras audíveis de seus ministros, pela água do Batismo, e pelo pão e pelo vinho da Comunhão. Há, é claro, circunstâncias extraordinárias, nas quais não se limita àqueles meios o poder e a graça do Senhor. Mas por que é que nós deveríamos fazer uma "teologia das exceções"? Nós não podemos dizer que o Batismo tem qualquer efeito por causa do argumento do bandido da cruz? E do bebê que morre antes de chegar à pia? Fazer teologia apelando apenas para as exceções nos deixaria com uma compreensão muito empobrecida dos sacramentos.

Nós deveríamos, como pastores reformados, afirmar que os meios normais, ordinários, pelos quais Deus comunica as suas dádivas são, de fato, aqueles que ele mesmo constituiu, não outros além ou em torno deles, e muito menos sem eles! Esse é o modus operandi normal de Deus. O Espírito Santo normalmente opera através dos instrumentos físicos e humanos que ele mesmo ordenou. Do contrário, as promessas que são vinculadas a esses meios são enganosas e mesmo traiçoeiras.

Entender a promessa do Espírito Santo de usar os meios determinados pelo Senhor como instrumentos para entregar as dádivas do Reino é uma das marcas da eclesiologia sacramental reformada de Calvino. Por que não cremos no que Deus nos prometeu? Por que nos ofendemos em pensar que Deus realmente cumpre a sua promessa no Batismo? Ou na Ceia do Senhor? Ou no serviço da Palavra por meio dos que ele deu ao Ministério da Igreja? Um dos meus professores em Concordia diz: "Nós, pessoas modernas, não mais encontramos o Espírito Santo ele deveria ser buscado... não entendemos mais o elo prometido do Espírito Santo com os meios externos de graça, e talvez nem mais queiramos ouvi-lo. (NAGEL, Norman. Externum Verbum, Logia 6. Trinity 1997, pp. 27-32). Calvino diz assim, ao comentar João 20.23 e o comissionamento dos discípulos como ministros do Evangelho:

Agora vemos o motivo pelo qual Cristo emprega termos tão grandiosos, para elevar e adornar o ministério que ele confia e entrega aos Apóstolos. É para que os crentes possam ser plenamente convencidos de que o que eles ouvem a respeito do perdão dos pecados está ratificado e não pode ter menos valor a reconciliação que é oferecida pela voz dos homens, do que se o próprio Deus estendesse sua mão dos céus. E a igreja recebe diariamente o mais abundante benefício dessa doutrina, quando percebe que seus pastores são divinamente ordenados para que sejam certeza da eterna salvação, e que não se precisa ir longe para buscar o perdão dos pecados, que é confiado aos seus cuidados. (Commentary on the Gospel according to John, v. 2, trad. William Pringle. Grand Rapids: Baker, 1981, p. 272)

sábado, 9 de agosto de 2008

Presbiterianos & Liturgia, parte 9

O efeito anti-litúrgico do imediacionismo e do individualismo da moderna soteriologia calvinista norte-americana.

Por Jeffrey Meyers.

(continuação da Parte 8)
(leia o original aqui)


Parece que, para que esteja resguardada a soberania da obra de Deus, nós freqüentemente pensamos que devemos remover todos os meios, toda a mediação e, de fato, toda instrumentalidade da humanidade e da criação, e confinar a obra da salvação e da santificação a operações particulares, não mediadas, do Espírito sobre a alma do indivíduo homem.

Teólogos e pastores reformados são particularmente suscetíveis a esse erro por causa da influência indevida do livrinho de B. B. Warfield, The plan of salvation (Philadelphia: Presbyterian Board of Publications, 1915). Antes mesmo de dizer alguma coisa sobre o livro, deixem-me já rebater as já esperadas críticas dos fãs de Warfield. Ele foi um ótimo teólogo bíblico e sistemático. Não duvido disso nem por um minuto. Eu mesmo me beneficiei muito das suas obras. Essa é a primeira coisa a dizer.

A segunda é que eu não estou preocupado tanto com a teologia de Warfield em geral, mas com o que está expresso nesse livreto, O plano da salvação. Muita gente não tem contato com Warfield, senão por esse livro. Eu sei que isso é verdade especialmente para boa parte dos seminaristas. Meu problema é que esse livrinho, ao contrário do restante da obra de Warfield, apresenta um retrato muito mal tirado da sua teologia e, portanto, da teologia calvinista dos sacramentos, da liturgia e da igreja.

Sem fornecer um mínimo de prova escriturística, Warfield afirma que "a fé evangélica significa precisamente a dependência imediata da alma de Deus, e de Deus apenas, para a salvação" (p. 66, ênfase minha). Qualquer teologia que "separa a alma do contato direto com, e da dependência imediata de Deus, o Espírito Santo", é chamada de "sacerdotalismo".

Isso é perturbador. Se esse livrinho for tomado isolado do restante da obra mais aprofundada de Warfield, então isso conduzirá o leitor a se libertar da Reforma magisterial, especialmente da insistência luterana e calvinista de que Deus de fato usa instrumentos humanos (água, pão, vinho, a voz de outros seres humanos etc.) para comunicar-se a si mesmo e sua graça a seu povo.

O conceito warfieldiano de um calvinismo purificado como consistindo da imediação da obra do Espírito na alma do homem era mais motivada, temo eu, pelo seu preconceito contra os sistemas sacramentais de Roma e Cantuária do que por uma leitura cuidadosa das Sagradas Escrituras. Isso continua sendo um problema em rodas reformadas.

Warfield argumenta que a imediação é a essência da fé reformada e a própria realização da religião bíblica.

Pelo contrário, eu argumentaria que a noção não-bíblica da imediação é o calcanhar de Aquiles do calvinismo americano. Por que nós sentimos que seria uma indignidade o Espírito Santo ligar-se a si mesmo a meios externos tão inexpressivos como as palavras familiares proclamadas pela sepulcral voz de um pregador de carne e osso, ou o pão e o vinho da Ceia, ou a água do Batismo? Não será por causa de um falso espiritualismo, uma espécie de gnosticismo que se infiltrou no nosso pensamento enquanto cristãos? Uma noção estranha, não-bíblica, de que o Espírito deve operar na alma do homem sem o uso de meios ou instrumentos externos? Onde esto está ensinado na Bíblia?

A verdadeira essência da religião bíblica é, talvez, a coisa mais difícil a ser reaprendida por nós, modernos cristãos espiritualistas. Estamos tão acostumados a pensar em termos de corpo e alma, carne e espírito, físico e espiritual como sendo opostos, que deixamos de compreender que a plena magnitude do amor de Deus reside no fato surpreendente de que o Filho de Deus veio a nós em carne, e que o Espírito Santo generosamente liga-se a si mesmo aos meios de graça. Negar isso é derrapar para uma forma de gnosticismo.

Phillip Lee argumenta convincentemente que o protestantismo norte-americano em particular tem, talvez inadvertidamente, abraçado uma espiritualidade gnóstica (Against the protestant gnostics. Oxford: Oxford University Press, 1987). Acho que ele está certo. Os reformados modernos não gostam de liturgia porque acham que ela introduz um indesejado "intermediário" entre Deus e a alma individual. Esse monte de coisa só serve para complicar. Não precisamos disso. Afinal, se eu tenho contato espiritual direto com Jesus, pra quê eu vou precisar dessas outras coisas materiais?

(Continua)

domingo, 3 de agosto de 2008

Jesus, o partir do pão e Santa Ceia

Adaptado da homilia da abertura da Escola Dominical da Igreja Presbiteriana de Franca, de 3 de agosto de 2008.

O Evangelho de hoje (S. Mateus 14.13-21) é um texto conhecidíssimo. O título que a Sociedade Bíblica do Brasil deu para essa passagem, é “A primeira multiplicação dos pães”. Graças a Deus, nem a divisão dos capítulos e dos versículos, que, em muitos textos, varia de estranha a ridícula, e nem os títulos que as editoras dão, são parte da Bíblia, porque estão cheias de erros.
Mas eu chego nisso mais adiante. Para entender esse texto, nós precisamos examinar também o contexto dele. Verso 13. “Jesus, ouvindo isto, retirou-se dali num barco”. Ouvindo o quê? Vamos voltar para o começo do capítulo. Os versos 1 a 12 falam da morte de João Batista e dos motivos por trás dela.

João Batista era um profeta, no sentido verdadeiro da palavra: ele anunciava a Palavra e a vontade de Deus, sem se importar com quem isso pudesse incomodar. E incomodou. O Rei Herodes estava tendo um caso com a cunhada, esposa do seu irmão; João foi acusar o seu pecado e acabou preso. Herodes não queria matá-lo, porque o povo o tinha em alta conta.
Eu acho interessante o paralelo que isso tem com o catolicismo popular do interior do Brasil, especialmente no sertão do Nordeste. Toda vez que aparece por lá alguém que consegue cativar o povo com a sua pregação, e especialmente se essa pregação é contra a imoralidade dos poderosos, logo esse alguém vira profeta, e santo, e logo depois começam a aparecer histórias de que essa pessoa fazia milagres e tudo o mais. Padre Cícero, Antônio Conselheiro, entre outros mais. A mistura de miséria do povo com corrupção dos poderosos deixa o povo propenso a criar e alimentar essas figuras.

Na Palestina do século I era a mesma coisa. Povo miserável, com governantes corruptos que estavam vendendo os seus países para Roma, em vez de se arriscar a resistir. Foi nesse contexto que despontou João Batista. Mas João Batista só tinha uma missão, que já tinha sido dada pelo profeta Isaías, séculos antes: preparar o caminho do Senhor. João Batista foi o precursor de Jesus.

Pois bem. João estava preso, mas Herodes não queria matá-lo com medo de um levante popular. A sua amante, então, mexeu os seus pauzinhos e manipulou Herodes, que acabou tendo de mandar matar João Batista e lhe trazer a sua cabeça numa bandeja.
Como será que Jesus ficou quando recebeu essa notícia? Primeiro, não era um simples conhecido que tinha acabado de morrer. Era seu primo, amigo de infância, que ele conhecia bem, desde antes de nascer.

Segundo, porque isso lembrou o Senhor Jesus de qual era a sua missão na terra. Logo em breve ele sabia que ia encarar o mesmo destino de João Batista. Ser profeta, anunciar a vontade de Deus e denunciar a corrupção dos homens, especialmente a dos poderosos, nunca foi um negócio saudável em Israel. Em várias passagens o Senhor Jesus falou sobre isso, que profeta não tem honra na sua própria terra, e que Israel sempre fez questão de desprezar, maltratar e não raro matar aqueles que Deus, com toda a paciência e amor, mandava para dar mais uma chance ao seu povo de se corrigir.

Então Jesus deu uma prova da sua humanidade: ele se retirou. Precisava digerir essa notícia, precisava repensar seu próprio ministério. Precisava ficar sozinho com o Pai, sendo consolado pelo Espírito. Várias vezes nós vemos o Senhor Jesus fazendo isso. Bem capaz de, se a gente colocar nesses programas de busca de texto, achar umas duas dúzias de vezes essa expressão “retirou-se dali”, só nos Evangelhos.

O Senhor Jesus pegou um barco e procurou um lugar deserto; ele precisava de um tempo sozinho. Mas as multidões, aquelas mesmo que Herodes temia que fossem se revoltar, iam seguindo por terra o barco de Jesus, que viu isso tudo. O povo. Inconstante, capaz de aclamar alguém num dia, vaiar no outro e depois morrer de remorso, ou nem se importar. Quando se está em multidão é que se é mais humano, é que a humanidade mostra as suas melhores qualidades e os seus maiores defeitos.

Jesus viu isso. E não se irritou com a falta de privacidade diante desses paparazzi, nesse momento de luto, de tristeza e de pesar. Ele viu o povo que o seguia desesperado. E se compadeceu deles. Em vez de fugir, ele desembarcou. Curou os doentes, pregou para eles.
Ao cair da tarde, a história a gente conhece bem. O povo com fome, os discípulos em pânico, querendo despachar o povo para que se virassem para comer, Jesus manda que eles mesmos alimentem o povo.

Eu acho curiosíssimos os inesgotáveis paralelos da Bíblia. No seminário, os estudantes gastam anos inteiros estudando como encontrar esses paralelos e o que eles significam; a exegese de final de curso de um tio meu, que é pastor da Primeira IPI de Manaus, por exemplo, foi sobre a estrutura quiástica de uma única passagem do Evangelho de Lucas, e rendeu sozinha mais de 50 páginas.

E nessa passagem, eu quero destacar alguns paralelos, também.

Primeiro, porque essa pode ter sido a primeira multiplicação dos pães operada por Jesus, mas está longe de ser a primeira que se viu na Bíblia. No 2.º Livro dos Reis, 4.42-44, vemos um relato parecidíssimo, protagonizado por Eliseu. Eu vou ler:

“Veio um homem de Baal-Salisa e trouxe ao homem de Deus pães das primícias, vinte pães de cevada, e espigas verdes no seu alforje. Disse Eliseu: Dá ao povo para que coma. Porém, seu servo lhe disse: como hei de eu pôr isto diante de cem homens? Ele tornou a dizer: Dá-o ao povo, para que coma; porque assim diz o Senhor: comerão, e sobejará. Então, lhos pôs diante: comeram, e ainda sobrou, conforme a palavra do Senhor”.

Outros paralelos que nós encontramos têm a ver com o costume do próprio Jesus de dar graças pelo alimento. Nós vemos isso várias vezes, em momentos importantes. Aqui, na primeira multiplicação do pão: Jesus ergue os olhos aos céus, abençoa os alimentos, ou dá graças por eles, no relato de Marcos, parte os pães e dá aos seus discípulos.
Mateus 15.36, Marcos 6.41, Marcos 8.6, Lucas 9.16, João 6.11. Todos usam essa mesma estrutura: Jesus eleva os olhos para o céu, dá graças, abençoa o pão, parte e dá aos seus discípulos.

Mas há outras ocasiões em que isso acontece: na última ceia. Mateus 26.26: Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o partiu e o deu aos discípulos, dizendo, tomai, comei, isto é o meu corpo. Tomou um cálice, e tendo dado graças, o deu aos discípulos dizendo: bebei dele todos, isto é o meu sangue. Mesma coisa em Marcos 14.22, Lucas 22.19, I Coríntios 11.24.
E outra vez, ainda, já ressurreto, com os discípulos no caminho de Emaús, em Lucas 24.30. Aliás, foi por causa disso que os discípulos o reconheceram.

Jesus tinha o seu jeito próprio de alimentar os seus. Não era só um ritual, esse costume de elevar os olhos para o céu, dar graças, abençoar o pão, partir e dar aos discípulos. Ao fazer isso, cada refeição se tornava Santa. Uma Santa Ceia, um Santo Desjejum, um Santo Almoço, um Santo Lanche da Tarde, um Santo Assalto à Geladeira de Madrugada. Não eram apenas os corpos dos discípulos que estavam sendo alimentados, mas também e principalmente as suas almas. Então, outra bola fora dos títulos da SBB, a última ceia não foi a última. Nem a primeira.
Ao criar e repetir a fórmula da consagração, Jesus estava, desde o começo, apontando para o significado da sua vida e da sua morte: o pão que ele partiu e multiplicou, duas vezes, já era o seu corpo. O pão partido na última ceia, já era o seu corpo. O pão partido em Emaús, já era o seu corpo. Se a gente for mais longe, o pão que o profeta multiplicou já era o seu corpo. O maná que desceu do céu e foi o único sustento do povo de Deus no deserto, já era o corpo de Cristo, que 4.000 anos depois confirmou, dizendo: eu sou o pão vivo que desceu do céu.

Na prática, isso precisa ser refletido com mais seriedade na nossa celebração da Santa Ceia. Nós, presbiterianos do Brasil, acabamos copiando muita coisa errada das igrejas evangélicas, em vez de nos espelharmos nas igrejas protestantes. Então, quando vamos celebrar a Santa Ceia, tem igreja que trata como se fosse o almoço de domingo na casa da avó: faz uma oração rápida, aquela oração de fome, e todo mundo ataca. A gente imita o nosso avô, e isso seria legal se a Santa Ceia fosse mesmo um almoço de domingo na casa da avó, afinal, esse é o ritual. Mas se nós vamos repetir o ritual do sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor Jesus, talvez fosse melhor a gente ser imitador de Jesus, e não do nosso avô?

As igrejas presbiterianas e reformadas dos EUA e da Europa já estão tomando consciência disso e resgatando a celebração da Eucaristia da Igreja primitiva, a igreja dos Pais Apostólicos, que é um diálogo bonito, poético, até, entre o celebrante e o povo, em vez daquele monólogo corrido que a gente vê hoje em tantos lugares, como se a Santa Ceia fosse uma coisa chata que só serve pra deixar o culto mais comprido uma vez por mês, então vamos logo com isso...

Assim como Cristo fazia, o ritual da Santa Ceia da igreja pós-apostólica tinha várias partes, cada uma com o seu significado.

O elevar dos olhos aos céus, que Calvino dizia que não era apenas dos olhos, mas também dos corações (engraçado notar, na liturgia católica romana, diz-se “corações ao alto”; na reformada e presbiteriana, nas igrejas que usam a liturgia completa, nós dizemos “elevemos os corações”. É um convite, não um assalto!).

Depois, a ação de graças. Na liturgia cristã, ela ganhou o nome de Grande Ação de Graças, porque aqui nós não vamos dar graça só pelo alimento, mas também pelo Corpo de Cristo, partido por nós. Aliás, vamos dar graças, glórias e louvores, por tudo o que veio antes disso, também, desde o pecado de Adão até a morte e a ressurreição de Cristo, e a promessa da segunda vinda dele, que nós aguardamos ansiosos.

Em seguida, seguindo o exemplo de Cristo, a igreja ora a Deus nas palavras que o Senhor ensinou, o Pai Nosso. Aí é que vem as palavras da instituição, a consagração e o partir do pão e o partilhar do cálice. Eu acho interessantíssimo, que o Rev. Allen é o único pastor que eu conheço que prefere usar o texto de João 6. Todos os outros pastores que eu conheço usam o texto de Coríntios.

Um teólogo suíço do século XX lembra que Deus está fora do tempo, então, para ele, cada vez que nós nos reunimos para celebrar a Santa Ceia, é como se nós estivéssemos fazendo isso ao mesmo tempo, junto com todos os outros cristãos que já viveram e que ainda vão viver: para quem vê a linha do tempo de fora, esses pontinhos separados convergem para uma única cadeia de eventos: a morte, a ressurreição e a volta gloriosa de Cristo. Os anglicanos, os luteranos e os reformados europeus sempre anunciaram isso na celebração da Ceia, o mistério da fé. Isso não é coisa de católico romano, é coisa de cristão, já existia antes do bispo de Roma dar o golpe e virar Papa no século VII. E se a gente levar isso em consideração, seria legal respeitar também a forma que Jesus instituiu pra gente fazer isso. Os presbiterianos americanos e escoceses estão redescobrindo isso desde o século XX. Talvez seja agora a nossa vez.

Concluindo, Santa Ceia não é cemitério, não é um ritual fúnebre. Não é só anunciar a morte do Senhor até que ele venha. É anunciar que ele morreu, que ele ressuscitou e que ele voltará em glória. É dar graças a Deus por isso, por toda a história da nossa salvação, desde o pecado original até a morte e a ressurreição de Jesus. É entender por quê e para quê tudo isso aconteceu. Talvez seja por causa dessa visão “cemitério” da Santa Ceia que tantas igrejas preferem celebrá-la o mínimo possível. Tem igreja presbiteriana aqui no Brasil em que ela é celebrada quatro vezes no ano e só.

Mais do que isso, Santa Ceia é participar espiritualmente do Corpo e do Sangue de Cristo, e não só comer um cubinho de pão-de-forma e um dedal de suco de uva, todo mundo com cara de enterro como se Jesus ainda estivesse morto. Presbiteriano fala mal do crucifixo dos católicos, mas muitos de nós agimos na ceia como se Jesus ainda estivesse pendurado lá mesmo! Graças a Deus a gente já se livrou do pão-de-forma e usa um pão único, e está se livrando da cara de funeral também. Brincando um pouco, um dia se Deus quiser e o Conselho aprovar a gente se livra do suco e usa vinho de verdade, pra alegria ser completa!