Adaptado da homilia da abertura da Escola Dominical da Igreja Presbiteriana de Franca, de 3 de agosto de 2008.
O Evangelho de hoje (S. Mateus 14.13-21) é um texto conhecidíssimo. O título que a Sociedade Bíblica do Brasil deu para essa passagem, é “A primeira multiplicação dos pães”. Graças a Deus, nem a divisão dos capítulos e dos versículos, que, em muitos textos, varia de estranha a ridícula, e nem os títulos que as editoras dão, são parte da Bíblia, porque estão cheias de erros.
Mas eu chego nisso mais adiante. Para entender esse texto, nós precisamos examinar também o contexto dele. Verso 13. “Jesus, ouvindo isto, retirou-se dali num barco”. Ouvindo o quê? Vamos voltar para o começo do capítulo. Os versos 1 a 12 falam da morte de João Batista e dos motivos por trás dela.
João Batista era um profeta, no sentido verdadeiro da palavra: ele anunciava a Palavra e a vontade de Deus, sem se importar com quem isso pudesse incomodar. E incomodou. O Rei Herodes estava tendo um caso com a cunhada, esposa do seu irmão; João foi acusar o seu pecado e acabou preso. Herodes não queria matá-lo, porque o povo o tinha em alta conta.
Eu acho interessante o paralelo que isso tem com o catolicismo popular do interior do Brasil, especialmente no sertão do Nordeste. Toda vez que aparece por lá alguém que consegue cativar o povo com a sua pregação, e especialmente se essa pregação é contra a imoralidade dos poderosos, logo esse alguém vira profeta, e santo, e logo depois começam a aparecer histórias de que essa pessoa fazia milagres e tudo o mais. Padre Cícero, Antônio Conselheiro, entre outros mais. A mistura de miséria do povo com corrupção dos poderosos deixa o povo propenso a criar e alimentar essas figuras.
Na Palestina do século I era a mesma coisa. Povo miserável, com governantes corruptos que estavam vendendo os seus países para Roma, em vez de se arriscar a resistir. Foi nesse contexto que despontou João Batista. Mas João Batista só tinha uma missão, que já tinha sido dada pelo profeta Isaías, séculos antes: preparar o caminho do Senhor. João Batista foi o precursor de Jesus.
Pois bem. João estava preso, mas Herodes não queria matá-lo com medo de um levante popular. A sua amante, então, mexeu os seus pauzinhos e manipulou Herodes, que acabou tendo de mandar matar João Batista e lhe trazer a sua cabeça numa bandeja.
Como será que Jesus ficou quando recebeu essa notícia? Primeiro, não era um simples conhecido que tinha acabado de morrer. Era seu primo, amigo de infância, que ele conhecia bem, desde antes de nascer.
Segundo, porque isso lembrou o Senhor Jesus de qual era a sua missão na terra. Logo em breve ele sabia que ia encarar o mesmo destino de João Batista. Ser profeta, anunciar a vontade de Deus e denunciar a corrupção dos homens, especialmente a dos poderosos, nunca foi um negócio saudável em Israel. Em várias passagens o Senhor Jesus falou sobre isso, que profeta não tem honra na sua própria terra, e que Israel sempre fez questão de desprezar, maltratar e não raro matar aqueles que Deus, com toda a paciência e amor, mandava para dar mais uma chance ao seu povo de se corrigir.
Então Jesus deu uma prova da sua humanidade: ele se retirou. Precisava digerir essa notícia, precisava repensar seu próprio ministério. Precisava ficar sozinho com o Pai, sendo consolado pelo Espírito. Várias vezes nós vemos o Senhor Jesus fazendo isso. Bem capaz de, se a gente colocar nesses programas de busca de texto, achar umas duas dúzias de vezes essa expressão “retirou-se dali”, só nos Evangelhos.
O Senhor Jesus pegou um barco e procurou um lugar deserto; ele precisava de um tempo sozinho. Mas as multidões, aquelas mesmo que Herodes temia que fossem se revoltar, iam seguindo por terra o barco de Jesus, que viu isso tudo. O povo. Inconstante, capaz de aclamar alguém num dia, vaiar no outro e depois morrer de remorso, ou nem se importar. Quando se está em multidão é que se é mais humano, é que a humanidade mostra as suas melhores qualidades e os seus maiores defeitos.
Jesus viu isso. E não se irritou com a falta de privacidade diante desses paparazzi, nesse momento de luto, de tristeza e de pesar. Ele viu o povo que o seguia desesperado. E se compadeceu deles. Em vez de fugir, ele desembarcou. Curou os doentes, pregou para eles.
Ao cair da tarde, a história a gente conhece bem. O povo com fome, os discípulos em pânico, querendo despachar o povo para que se virassem para comer, Jesus manda que eles mesmos alimentem o povo.
Eu acho curiosíssimos os inesgotáveis paralelos da Bíblia. No seminário, os estudantes gastam anos inteiros estudando como encontrar esses paralelos e o que eles significam; a exegese de final de curso de um tio meu, que é pastor da Primeira IPI de Manaus, por exemplo, foi sobre a estrutura quiástica de uma única passagem do Evangelho de Lucas, e rendeu sozinha mais de 50 páginas.
E nessa passagem, eu quero destacar alguns paralelos, também.
Primeiro, porque essa pode ter sido a primeira multiplicação dos pães operada por Jesus, mas está longe de ser a primeira que se viu na Bíblia. No 2.º Livro dos Reis, 4.42-44, vemos um relato parecidíssimo, protagonizado por Eliseu. Eu vou ler:
“Veio um homem de Baal-Salisa e trouxe ao homem de Deus pães das primícias, vinte pães de cevada, e espigas verdes no seu alforje. Disse Eliseu: Dá ao povo para que coma. Porém, seu servo lhe disse: como hei de eu pôr isto diante de cem homens? Ele tornou a dizer: Dá-o ao povo, para que coma; porque assim diz o Senhor: comerão, e sobejará. Então, lhos pôs diante: comeram, e ainda sobrou, conforme a palavra do Senhor”.
Outros paralelos que nós encontramos têm a ver com o costume do próprio Jesus de dar graças pelo alimento. Nós vemos isso várias vezes, em momentos importantes. Aqui, na primeira multiplicação do pão: Jesus ergue os olhos aos céus, abençoa os alimentos, ou dá graças por eles, no relato de Marcos, parte os pães e dá aos seus discípulos.
Mateus 15.36, Marcos 6.41, Marcos 8.6, Lucas 9.16, João 6.11. Todos usam essa mesma estrutura: Jesus eleva os olhos para o céu, dá graças, abençoa o pão, parte e dá aos seus discípulos.
Mas há outras ocasiões em que isso acontece: na última ceia. Mateus 26.26: Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o partiu e o deu aos discípulos, dizendo, tomai, comei, isto é o meu corpo. Tomou um cálice, e tendo dado graças, o deu aos discípulos dizendo: bebei dele todos, isto é o meu sangue. Mesma coisa em Marcos 14.22, Lucas 22.19, I Coríntios 11.24.
E outra vez, ainda, já ressurreto, com os discípulos no caminho de Emaús, em Lucas 24.30. Aliás, foi por causa disso que os discípulos o reconheceram.
Jesus tinha o seu jeito próprio de alimentar os seus. Não era só um ritual, esse costume de elevar os olhos para o céu, dar graças, abençoar o pão, partir e dar aos discípulos. Ao fazer isso, cada refeição se tornava Santa. Uma Santa Ceia, um Santo Desjejum, um Santo Almoço, um Santo Lanche da Tarde, um Santo Assalto à Geladeira de Madrugada. Não eram apenas os corpos dos discípulos que estavam sendo alimentados, mas também e principalmente as suas almas. Então, outra bola fora dos títulos da SBB, a última ceia não foi a última. Nem a primeira.
Ao criar e repetir a fórmula da consagração, Jesus estava, desde o começo, apontando para o significado da sua vida e da sua morte: o pão que ele partiu e multiplicou, duas vezes, já era o seu corpo. O pão partido na última ceia, já era o seu corpo. O pão partido em Emaús, já era o seu corpo. Se a gente for mais longe, o pão que o profeta multiplicou já era o seu corpo. O maná que desceu do céu e foi o único sustento do povo de Deus no deserto, já era o corpo de Cristo, que 4.000 anos depois confirmou, dizendo: eu sou o pão vivo que desceu do céu.
Na prática, isso precisa ser refletido com mais seriedade na nossa celebração da Santa Ceia. Nós, presbiterianos do Brasil, acabamos copiando muita coisa errada das igrejas evangélicas, em vez de nos espelharmos nas igrejas protestantes. Então, quando vamos celebrar a Santa Ceia, tem igreja que trata como se fosse o almoço de domingo na casa da avó: faz uma oração rápida, aquela oração de fome, e todo mundo ataca. A gente imita o nosso avô, e isso seria legal se a Santa Ceia fosse mesmo um almoço de domingo na casa da avó, afinal, esse é o ritual. Mas se nós vamos repetir o ritual do sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor Jesus, talvez fosse melhor a gente ser imitador de Jesus, e não do nosso avô?
As igrejas presbiterianas e reformadas dos EUA e da Europa já estão tomando consciência disso e resgatando a celebração da Eucaristia da Igreja primitiva, a igreja dos Pais Apostólicos, que é um diálogo bonito, poético, até, entre o celebrante e o povo, em vez daquele monólogo corrido que a gente vê hoje em tantos lugares, como se a Santa Ceia fosse uma coisa chata que só serve pra deixar o culto mais comprido uma vez por mês, então vamos logo com isso...
Assim como Cristo fazia, o ritual da Santa Ceia da igreja pós-apostólica tinha várias partes, cada uma com o seu significado.
O elevar dos olhos aos céus, que Calvino dizia que não era apenas dos olhos, mas também dos corações (engraçado notar, na liturgia católica romana, diz-se “corações ao alto”; na reformada e presbiteriana, nas igrejas que usam a liturgia completa, nós dizemos “elevemos os corações”. É um convite, não um assalto!).
Depois, a ação de graças. Na liturgia cristã, ela ganhou o nome de Grande Ação de Graças, porque aqui nós não vamos dar graça só pelo alimento, mas também pelo Corpo de Cristo, partido por nós. Aliás, vamos dar graças, glórias e louvores, por tudo o que veio antes disso, também, desde o pecado de Adão até a morte e a ressurreição de Cristo, e a promessa da segunda vinda dele, que nós aguardamos ansiosos.
Em seguida, seguindo o exemplo de Cristo, a igreja ora a Deus nas palavras que o Senhor ensinou, o Pai Nosso. Aí é que vem as palavras da instituição, a consagração e o partir do pão e o partilhar do cálice. Eu acho interessantíssimo, que o Rev. Allen é o único pastor que eu conheço que prefere usar o texto de João 6. Todos os outros pastores que eu conheço usam o texto de Coríntios.
Um teólogo suíço do século XX lembra que Deus está fora do tempo, então, para ele, cada vez que nós nos reunimos para celebrar a Santa Ceia, é como se nós estivéssemos fazendo isso ao mesmo tempo, junto com todos os outros cristãos que já viveram e que ainda vão viver: para quem vê a linha do tempo de fora, esses pontinhos separados convergem para uma única cadeia de eventos: a morte, a ressurreição e a volta gloriosa de Cristo. Os anglicanos, os luteranos e os reformados europeus sempre anunciaram isso na celebração da Ceia, o mistério da fé. Isso não é coisa de católico romano, é coisa de cristão, já existia antes do bispo de Roma dar o golpe e virar Papa no século VII. E se a gente levar isso em consideração, seria legal respeitar também a forma que Jesus instituiu pra gente fazer isso. Os presbiterianos americanos e escoceses estão redescobrindo isso desde o século XX. Talvez seja agora a nossa vez.
Concluindo, Santa Ceia não é cemitério, não é um ritual fúnebre. Não é só anunciar a morte do Senhor até que ele venha. É anunciar que ele morreu, que ele ressuscitou e que ele voltará em glória. É dar graças a Deus por isso, por toda a história da nossa salvação, desde o pecado original até a morte e a ressurreição de Jesus. É entender por quê e para quê tudo isso aconteceu. Talvez seja por causa dessa visão “cemitério” da Santa Ceia que tantas igrejas preferem celebrá-la o mínimo possível. Tem igreja presbiteriana aqui no Brasil em que ela é celebrada quatro vezes no ano e só.
Mais do que isso, Santa Ceia é participar espiritualmente do Corpo e do Sangue de Cristo, e não só comer um cubinho de pão-de-forma e um dedal de suco de uva, todo mundo com cara de enterro como se Jesus ainda estivesse morto. Presbiteriano fala mal do crucifixo dos católicos, mas muitos de nós agimos na ceia como se Jesus ainda estivesse pendurado lá mesmo! Graças a Deus a gente já se livrou do pão-de-forma e usa um pão único, e está se livrando da cara de funeral também. Brincando um pouco, um dia se Deus quiser e o Conselho aprovar a gente se livra do suco e usa vinho de verdade, pra alegria ser completa!
Um comentário:
Muito bom post Eduardo. Uma crítica pertinente e sem dúvida que muitos de nós precisa ouvir.
A ceia é um momento de vitória e alegria...e é isso que devemos celebrar.
Um forte abraço.
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