terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"O culto litúrgico é morto!"



Por James Shiels.

Texto originalmente publicado em A Wandering Pilgrim: Liturgical Worship is dead, 31 de julho de 2011. Traduzido com permissão.



"O culto litúrgico é morto."

"Deus só gosta de orações espontâneas, não de 'orações enlatadas'."

"O culto anglicano é chato! Levante-se, dance, divirta-se!"

Eu escutei cada uma dessas objeções (e tantas outras) contra o culto litúrgico. Quando eu era um protestante evangelical, provavelmente eu mesmo teria feito essas afirmações, apesar de jamais ter participado de uma igreja fortemente litúrgica. Minha opinião sobre o culto litúrgico era bem típica dos demais evangelicais: ritual morto. É, eu achava que igrejas litúrgicas eram mortas. Para um não-cristão, a palavra "litúrgico" pode indicar que o culto é desanimado, mas, como cristãos, as consequências são bem mais sérias. Quando alguém diz que uma igreja é "morta", isto não significa apenas que o culto é chato ou engessado, mas que ela não segue a vontade de Deus, que ela deu as costas ao "verdadeiro" culto cristão ou, pior ainda, que Deus deu as costas para essa igreja. Apesar da firmeza da minha opinião, eu nunca sequer me incomodei em pesquisar o que seria o culto litúrgico, nem sequer sabia o que litúrgico significava, muito menos a sua história. Para mim, litúrgico significava ritual e repetição mecânica, e eu com certeza jamais me envolveria com nada disso.



À medida em que comecei a ler e estudar o culto e a história da Igreja, como evangelical, comecei a lutar com a realidade de que o estilo de culto que eu preferia não apenas era desconhecido antes do século XX, mas era marcadamente ritualístico. Embora eu participasse de um culto estilo "louvor e adoração", a repetição mecânica e o ritual eram abundantes. Embora cantássemos cânticos, normalmente cantávamos sempre os mesmos, de novo e de novo. Todo domingo, o culto tinha a mesma estrutura: saudação, cântico, leitura, cântico, sermão, cântico, oração, cântico. O ministro lia do mesmo livro, a Bíblia, toda semana. As mesmas pessoas que batiam palmas nos cânticos em uma semana eram as que batiam na semana seguinte, e as que ficavam paradas em uma semana, normalmente ficavam também no domingo seguinte. Nos reuníamos no mesmo horário toda semana, e no mesmo dia. Nunca mudávamos de prédio, e sempre as mesmas pessoas dirigiam os cultos. Muitos traziam suas Bíblias fielmente para a igreja a cada semana, mecanicamente, e raramente as abriam durante a semana. Logo que comecei a procurar ritual e repetição mecânica na minha própria tradição, eu os achei. Mesmo quando visitava a igreja dos meus pais, em um ambiente evangelical mais contemporâneo, o qual também encarava com suspeitas a presença de ritual, o mesmo padrão ritualístico persistia, apesar da afirmação de que ritual e repetição eram, na melhor das hipóteses, sinais de uma igreja "morta" e, na pior delas, algo maligno. O que eu percebi foi que todos nós somos tradicionais e ritualistas, de certa forma.

A única forma em que uma igreja pode ser livre de ritual e repetição é fazer tudo novo toda semana. Acho que uma tal igreja pode até existir, mas teria de mudar de prédio, e mesmo de membros, para ser totalmente livre de tradição e ritual. Imagine uma igreja assim... hinos novos compostos a cada semana, novos estilos e instrumentos musicais, leituras de toda sorte de textos sagrados, membros diferentes participando a cada semana, cultos em dias e horários diferentes, e em prédios diferentes. E mesmo assim, depois de um tempo, os fatores que eu mencionei se tornariam rituais em si mesmos. Dá pra enlouquecer tentando escapar totalmente de qualquer tipo de ritual. Tenho certeza que muitos tentaram com empenho, na tentativa de evitar essas sinistras palavras iniciadas em "r-".

Mas como mostrei acima, não conseguimos ser totalmente livres do ritual, de verdade. Se conseguir ficar livre de todo ritual, me avise, lhe pago um café. Mas tome cuidado, porque se fizer algo bem o bastante para conseguir, é provável que isso também se torne um ritual. A pergunta, então, fica sendo: "de que tipo de ritual eu quero participar?". Isso pode se resumir a uma questão de tipo de personalidade, história de vida etc. Mas convenhamos, no final das contas, se for pra ser ritualista, é igualmente válido cultuar em um ritual bem-fundamentado, bíblico e histórico, provado e aprovado ao longo dos séculos. E aqui entra a liturgia cristã antiga.


Entre muitos cristãos, o culto litúrgico conquistou uma péssima reputação. O problema é que a liturgia tornou-se sinônimo de "chatice". Muitos imaginam uma meia-dúzia de velhinhos em um templo velho, simplesmente repetindo orações em cujas palavras já não acreditam faz tempo. Devo admitir que isso é algo que me preocupa na liturgia, porque com frequência sinto que algumas pessoas que recitam as palavras pouco se importam com seu significado. Mas mesmo em minhas preocupações, sei que essa opinião sobre a liturgia não é mais do que um jeito sombrio e errado de descrever o culto litúrgico. Na verdade, liturgia vem do grego, "trabalho do povo", e descreve uma forma de culto dirigida a Deus, pelo povo de Deus. Por essa definição, podemos descrever quase todo tipo de culto como "litúrgico" (de uma forma ou de outra), mas é óbvio que o culto de algumas igrejas requer mais trabalho de mais pessoas. Faça esse teste durante o culto da sua igreja. Preste atenção em quanto você participa nele. Preste atenção em quantas palavras são ditas, quantas orações são feitas, e então se pergunte, em quantos por cento disso você participou. A igreja fez alguma oração toda junta? Cantam juntos? Receberam a Comunhão juntos? Então pense nos líderes de louvor, ou nos pastores. Pense em quantos por cento do culto eles participaram. Os resultados podem surpreender, em quão pouco você participa de verdade, e quanto você simplesmente senta lá e assiste passivamente os dirigentes do culto. Mesmo que você considere seu nível de participação alto, pergunte-se quanto o povo trabalha unido no culto. Cada pessoa simplesmente faz suas orações enquanto o pastor faz a dele? As pessoas se reúnem em uma comunidade verdadeira, ou são um grupo em que cada um faz o seu? Por exemplo, vocês recebem a Comunhão de um cálice comum? Vocês dizem qualquer coisa juntos, como grupo?

Eu apliquei esse mesmo teste, dois anos atrás, em minha antiga igreja. Prestei muita atenção em quanto do culto era, de fato, trabalho do povo. Os cultos, no final das contas, eram quase totalmente trabalho do pastor. Cantávamos alguns salmos juntos, mas depois disso nossa participação acabava. Se alguma oração era feita, o pastor era o único que dizia alguma coisa.  O sermão, com frequência, era muito comprido, e no final eu percebia que a congregação não tinha feito nada; o pastor fez tudo. Depois do culto, eu saía com pressa para almoçar, enquanto o pastor e a equipe de louvor provavelmente se sentiam revitalizados. Eu começava a folhear a Biblia e a ler textos aleatórios, quando o sermão passava dos 20 minutos, mas o pastor provavelmente saía com a sensação de ter ouvido a palavra de Deus. Por quê? A razão é que o pastor e a equipe de louvor realmente participavam no culto, e eu era simplesmente um membro da plateia, que sentava e assistia passivamente.


Apesar de ter demorado um tempo para eu superar os velhos preconceitos, baseados em nada além de estereótipos e meias-verdades, agora eu sei que a liturgia não é morta. Como o trabalho do povo cultuando a Deus poderia ser morto? Orações em grupo, como a Oração do Senhor, embora não espontâneas, eram pelo menos orações bíblicas, feitas pelo povo, e não simplesmente para o povo. Liturgia  também não é sinônimo de repetição mecânica. Quando bem executada, segundo o padrão histórico, ela deixa grande espaço para orações e petições espontâneas, além de cânticos e hinos de diferentes estilos e épocas, cores diferentes, tempos litúrgicos diferentes, leituras bíblicas diferentes, e é aqui que o anglicanismo começa a reluzir. A liturgia pode ser tradicional, ou menos tradicional, e nem toda liturgia deve ser julgada pela liturgia malfeita. Na verdade, a grande variedade permitida no culto litúrgico rivaliza com a que se vê nas igrejas não-litúrgicas, que têm as mesmas cores, cânticos e tons de humor, o ano inteiro. Pense nisso. O que é mais repetitivo, cânticos de louvor toda semana ao longo do ano, ou um culto que varia conforme as estações? Quando é que um culto não-litúrgico satisfaz nossa necessidade de temor? De penitência? De reflexão? Raramente, se é que alguma vez. O culto litúrgico também é totalmente baseado na Bíblia. A maioria das igrejas litúrgicas, incluindo a Igreja da Irlanda, têm um lecionário, e isso significa que, ao longo de três anos, 95% da Bíblia será lida em voz alta no culto. Todo domingo, uma leitura do Antigo Testamento, uma do Novo Testamento, uma de um Evangelho e uma de um Salmo são feitas em voz alta. Além disso, as liturgias comunitárias das igrejas anglicana, romana e oriental são tiradas quase que totalmente da Bìblia. Ao cultuar em uma igreja anglicana, se você sabe bastante de Bíblia, você vai se dizer o tempo todo: "Epa, isso aqui é de I Crônicas". "Opa, Jesus disse isso em Lucas", e por aí vai. Os cultos diários de oração da Igreja, chamados Ofício Divino, também consistem principalmente de salmos e outros hinos tirados diretamente da Bíblia.

Aqueles de nós que adotam uma liturgia em nossos cultos participam de outra forma importante: muitas vezes nós celebramos a Eucaristia semanalmente, ou (no caso das Catedrais) diariamente, observando continuamente a ordem de Cristo, "fazei isto em memória de mim." A Eucaristia, que a maioria do pessoal aqui chama de Santa Ceia, ou Comunhão, é a comunidade inteira vindo até a mesa de Deus para compartilhar do Corpo e do Sangue de Cristo, e para lembrar de seu único e suficiente sacrifício por nossos pecados na Cruz. Para nós, a Comunhão é o acontecimento central do culto, mais do que a pregação. O sermão (chamado de homilia, embora eu ainda não tenha conhecido ninguém moderno que use esse nome) é simpesmente uma reflexão de 10 a 20 minutos sobre o Evangelho, e acontece mais ou menos no meio do culto. 

Estou acostumado com o sermão de 50 minutos, todo exegético, mas no sistema anglicano isso é quase inédito. Isso porque o trabalho do povo é a razão do culto, mais do que os sermões do pregador. É claro que a Eucaristia exige a participação ativa da comunidade. Ninguém pode participar passivamente na Eucaristia, simplesmente porque ela exige que se sente, levante, saia do seu lugar (mas você também pode optar por ficar lá, e refletir).

Com tudo isso, não quero dizer que nós, anglicanos, e nossos irmãos e irmãs romanos e ortodoxos não têm muito a aprender com nossos irmãos e irmãs mais pentecostais, que cultuam de uma forma mais "contemporânea". Os cultos de louvor e adoração contemporâneos são cheios de entusiasmo, propósito e uma empolgação com a própria fé. Enquanto é possível que esses elementos sejam levados a excessos, e até objeto de abuso, nós anglicanos poderíamos aprender a ter mais entusiasmo e propósito com nossa fé. Além disso, sermões mais longos oferecem uma boa oportunidade de educação religiosa e de ouvir a mensagem de Deus, e eles podem ser realmente benéficos. Quando começamos a considerar a homilia insignificante, perdemos de ouvir a palavra de Deus, e trazer o sermão mais para o centro do culto talvez melhore nosso conhecimento cristão e encoraje àqueles de nós no ministério a assumir um papel mais ativo em nossas congregações, de modo que nossos sermões e mensagens permaneçam contemporâneos, tenham significado e falem à vida das pessoas.


Agora, quando alguém me pergunta se o culto litúrgico é morto, eu explico o que é o culto litúrgico, sua verdadeira base bíblica, especialmente no culto dos antigos hebreus, sua celebração da vida, morte e ressurreição de Cristo, sua reflexão de cada emoção ao longo das celebrações do ano litúrgico e o uso que ele faz da oração comunitária para unir a comunidade. Eu lhes digo que a liturgia dá espaço para o culto contemporâneo, assim como para formas mais antigas, e se eles tiverem a curiosidade, lhes convido para um culto, e espero que enxerguem que, longe de sermos mortos, muitos de nós, cristãos litúrgicos, estamos muito vivos em nossa fé em Jesus Cristo, de cujo Corpo e Sangue participamos toda semana, cultuando com cristãos do passado e do presente, tudo para a glória de Deus.

James Shiels é candidato ao Sagrado Ministério na Igreja da Irlanda (anglicana), e editor do blog A Wandering Pilgrim.

Um comentário:

Ademilton disse...

Muito boa a abordagem, parabéns!