sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Uma Reforma bem conservadora, parte III

Revm.º Peter D. Robinson

(tradução do artigo A conservative Reformation, part III, originalmente publicado no blog The Old Highchurchman, editado pelo Bispo P.D. Robinson, sufragâneo da United Episcopal Church dos Estados Unidos. A Sociedade pela Liturgia Reformada agradece a gentil autorização de D. +Peter para traduzir e publicar esta série de artigos).

A Sagração do Arcebispo Matthew Parker
no Palácio de Lambeth, 17 de dezembro de 1559.

As duas peças-chave do Acordo Isabelino (Elisabetano) eram a revisão de 1559 do Livro de Oração Comum de 1552, e os Artigos de Religião. Ambos definiram a tônica teológica para a Reforma Inglesa ao fornecer a liturgia segundo a qual a Igreja deveria orar diariamente, e o padrão doutrinário ao qual o clero deveria subscrever e aderir.

Dos dois, o LOC é, em última análise, o mais importante, no que diz respeito à vida diária dos cristãos ingleses comuns. Eles o ouviam nos cultos, domingo após domingo, e feriado, e festival, e dia de semana, por toda a sua vida. Por tal freqüência e repetição, ele lenta e gradualmente se infiltrou na língua e na cultura da Inglaterra, tanto que, mesmo nos últimos vinte anos, um romancista (P.D. James, eu acho) escreveu uma série de romances que usava expressões do LOC como título - por exemplo, Devices and desires ["desígnios e desejos", N.T.], que vem da Confissão Geral. Foi ligeiramente revisado em 1604 e de novo, mais extensamente, em 1662, mas em essência, o Livro de Oração Comum de 1552/59 continua sendo a liturgia oficial da Igreja da Inglaterra (embora meio difícil de encontrar por aí).

Em sua metodologia litúrgica, Cranmer parece ter preferido o sistema de "emendas invisíveis" das Ordens Eclesiásticas luteranas [documentos constitucionais, confessionais e litúrgicos do luteranismo; N. do T.]. Assim, a revisão do Breviário, que tornou-se a Oração Matutina (Matinas) e a Oração Vespertina (Vésperas), seguiu mais as linhas de uma condensação do que de uma reformulação radical, com o material lendário e as lições bíblicas curtas do rito antigo sendo substituídas por aproximadamente quatro capítulos da Bíblia diariamente. O Lecionário de 1549 de Cranmer começa com Gênesis 1 e Mateus 1 no começo de janeiro, e atravessa uma vez o Antigo Testamento, e a maior parte dos Apócrifos uma vez; o Novo Testamento, exceto Apocalipse, três vezes, e o Apocalipse uma vez. Os Cânticos antigos foram mantidos, assim como algumas das orações-responsos que caracterizavam tão bem os antigos Ofícios.

A Ordem para a Celebração da Santa Comunhão, comumente chamada "a Missa" original de 1549 foi ainda mais conservadora que a luterana. Embora o Ofertório e as orações particulares do celebrante tenham sido removidas de acordo com o pensamento luterano, o velho Cânon Romano foi substituído por um novo Cânon, ou Oração de Consagração, que incorporava tanto a consagração propriamente dita, como também as Orações pela Igreja e uma Oração de Oblação. O conjunto foi composto para substituir o Cânon Gregoriano da Missa Romana, que soava desconjuntado quando traduzido para o inglês. Uma tradução do Cânon Gregoriano, datada de aproximadamente 1548, chegou a nós, é atribuída a Miles Coverdale e pode ter servido de rascunho para o LOC/1549. No entanto, parece inconcebível que Cranmer tenha, em qualquer época, pretendido usar o velho Cânon na nova "Missa".

Mesmo com a reestruturação que Cranmer fez do Cânon para se tornar a Oração de Consagração, a Ordem para a Comunhão do LOC/1549 ganhou alguns amigos inconvenientes, e boa dose de críticas ácidas. Stephen Gardiner (1500-1555), Bispo de Winchester sob Henrique VIII, que era, teologicamente, um católico não-papista, disse que ela preservava a essência de uma Missa Latina, uma declaração que levou a uma longa guerra de panfletos entre ele e Cranmer. Martin Bucer, o moderado ex-pastor reformado de Estrasburgo, criticou-a fortemente na sua Censura. Muitas das revisões de Cranmer parecem ter sido feitas em resposta às críticas de Bucer, mas fica claro, de qualquer forma, se Diarmaid McCulloch estiver correto, que o LOC/1549 nunca foi concebido senão apenas como um rito de transição, mesmo.

A reestruturação de Cranmer da Ordem para a Santa Comunhão foi bem radical e, concluída, ela ficava em algum lugar entre a Missa Alemã de 1526, de Lutero, e as ordens de Estrasburgo e Genebra. Sua seqüência era a seguinte:


A Oração do Senhor
Coleta por Pureza
Intróito
Kyrie Eleison
Gloria in Excelsis
Coleta do Dia
Coleta pelo Rei
Epístola
Evangelho
Sermão
(Ofertório)
Sursum Corda
Prefácio
Sanctus-Benedictus
O Cânon - que consistia das Orações pela Igreja, a Oração de Consagração e a Oração de Oblação
A Oração do Senhor
Fração e Saudação da Paz
Breve Exortação
Confissão Geral de Pecados
Absolvição
Palavras de Consolo
Oração de Humilde Acesso
Agnus Dei
(Comunhão)
Oração de Ação de Graças

Bênção


Cranmer modificou-a para eliminar qualquer impressão de que houvesse alguma forma de "oblação ou sacrifício" na Ceia do Senhor. Isso foi conseguido com a divisão do Cânone do LOC/1549. Portanto, a Ordem para a Santa Ceia de 1552 obedecia a seguinte seqüência:
A Oração do Senhor
Coleta por Pureza
Os Dez Mandamentos, em antífona com o Kyrie Eleison
Coleta do Dia
Coleta pelo Rei
Epístola
Evangelho
Credo
Sermão
Sentenças Bíblicas, enquanto as ofertas eram recolhidas
Oração pela Igreja
Exortação
Confissão Geral
Absolução
Palavras de Consolo
Sursum Corda
Prefácio
Sanctus
Oração de Humilde Acesso
Oração de Consagração, encerrada com as Palavras da Instituição
(Comunhão)
A Oração do Senhor
Oração de Oblação, ou Oração de Ação de Graças
Gloria in Excelsis

Bênção

Ainda mais radical foi o que Cranmer fez com a forma física de celebração da Eucaristia. A liturgia de 1549 ainda era celebrada com o celebrante voltado para o leste [litúrgico], com o sacerdote vestindo alba e casula, ou alba e estola. Em 1552, os paramentos de Missa foram eliminados e substituídas pela [batina e] sobrepeliz. A mesa de madeira disposta como um altar, de 1549, foi movida para o meio do coro, longitudinalmente, com as pontas a leste e a oeste, e os comungantes ajoelhados em torno dela. Mesmo esse rearranjo radical ainda era conservador demais para alguns.


Coro de uma pequena paróquia anglicana, com a Mesa da Comunhão disposta da forma como ordenava a Liturgia da Comunhão de 1549. Notar as almofadas para os comungantes se ajoelharem em torno da Mesa.

A forma revisada da Oração de Consagração, consistente apenas de uma breve explicação de por que nós celebramos este culto e as Palavras da Instituição, ainda soa mais luterana do que reformada, mas, por outro lado, as palavras ditas ao comungante quando dados a este o Pão e o Vinho indicavam que Cranmer estava no campo da "presença verdadeira", de Bucer, Bullinger e Calvino, e não no da "presença real" [no sentido de "material", N.T.], de Lutero, Melanchton e o tio de sua esposa, Osiander. Em lugar das fórmulas tradicionais usadas em 1549, Cranmer instrui o seguinte: "Toma e come isto em memória de que Cristo morreu por ti, e nutre-te dele em teu coração pela fé com ação de graças" e "Bebe isto em memória de que o sangue de Cristo foi derramado por ti", o que indica uma concepção de que a presença de Cristo está não nos elementos, mas na própria celebração. No entanto, a intervenção de última hora de Hooper e Knox resultou na inclusão da chamada "Rubrica Negra", que negava que havia qualquer presença "real e essencial" de Cristo nos elementos, e deixava claro que o ajoelhar para a Comunhão era um sinal de gratidão (!) pela obra de Cristo. A mudança final de Cranmer foi colocar o Gloria in Excelsis depois da Comunhão; uma medida provavelmente inspirada por S. Mateus 26.30.

Essa longa divagação foi necessária para melhor explicar o que aconteceu ao LOC/1552, quando Isabel e seus conselheiros puseram as mãos nele em 1559. Fica claro, pelo que aconteceu com o LOC, que Isabel e seus conselheiros tencionavam voltar um pouco atrás no Acordo Religioso de 1552. Para começo, a Oração Matutina agora era precedida de duas rubricas (instruções), a primeira determinando que "os coros deverão permanecer como antigamente", e a segunda exigia que os ornamentos, tanto das igrejas como dos ministros, deverão ser aqueles permitidos "pela autoridade do Parlamento no segundo ano do reinado de Eduardo VI". Isto efetivamente autorizava Mesas de Comunhão dispostas na forma de altares e o uso de paramentos eucarísticos, mas barrava o uso de água benta, imposição de cinzas na Quarta-Feira de Cinzas e a antiga procissão com palmas no Domingo de Ramos, todos abolidos em 1548. A legislação também limitava o uso de velas ao número de duas, dispostas sobre o altar.

A segunda "emenda invisível" veio na Ordem para a Comunhão, na qual as palavras de administração para o pão foram alteradas para "O Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi partido por ti, preserve teu corpo e alma para a vida eterna. Toma e come em memória de que Cristo morreu por ti, e nutre-te dele em teu coração pela fé, com ação de graças." As palavras ditas para a administração do Cálice agora diziam "O Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi vertido por ti, preserve teu corpo e alma para a vida eterna. Bebe isto em memória de que o Sangue de Cristo foi vertido por ti, e sê agradecido." Isto resultou em um formulário que era muito mais luterano ou filipista do que reformado. A outra modificação importante no culto de Comunhão foi a remoção da "Rubrica Negra", que era ofensiva aos luteranos e, de fato, para qualquer um que cresse na presença real de Cristo na Eucaristia. Não foi restaurada senão em 1662, e mesmo então, foi significativamente modificada.

As outras mudanças tiveram uma importância menor. O lecionário foi modificado para que o Novo Testamento fosse lido duas, e não três vezes, e a Petição contra o Papa foi removida da Litania, de modo a não ofender aqueles que porventura ainda nutrissem alguma afeição pelo papado. Havia também um grande número de correções menores [aos textos das] Epístolas e Evangelhos, que à época eram extraídos da "Grande Bíblia" de 1538.

Se as disposições cerimoniais do LOC/1559 não tivessem se tornado letra morta menos de um ano e meio depois da sua publicação, os cultos da Igreja da Inglaterra guardariam alguma semelhança com aqueles das igrejas luteranas do norte da Alemanha, Dinamarca e Noruega. Da forma como estava, havia uma bem disseminada rebelião contra os paramentos exigidos pelo novo LOC. Como de costume, o ponto focal era Londres, onde se concentravam muitos dos ex-exilados protestantes, que haviam aguardado em Zurique, Estrasburgo e Genebra o fim do reinado de Maria.

Um sinal precoce do problema que os paramentos estavam para causar foi a atitude dos bispos consagrantes de Parker. Somente Barlow, o principal consagrante, estava propriamente paramentado. Hodgkin estava de sobrepeliz, e Coverdale, vestindo uma toga cinza! [vide gravura no início do artigo, N.T.] Parker teve de lutar duramente para fazer cumprir o uso da sobrepeliz, e no que concernisse a Londres, os paramentos eucarísticos eram letra morta. Por outro lado, há alguma evidência de que, em algumas paróquias rurais, elas continuaram em uso por alguns anos, até que o puritanismo ou a idade os alcançassem, e há, ocasionalmente, registro de albas sendo usadas até o final do século XVIII.

Mesmo com as últimas concessões no que tangia ao uso de paramentos, a revisão de 1559 do Livro de Oração Comum colocou a Igreja da Inglaterra entre as tradições luterana e reformada, na sua prática litúrgica. O LOC guardava fortes semelhanças com as Ordens Eclesiásticas luteranas, mas houve muito mais influência reformada no Culto de Comunhão do que alguém provavelmente encontraria na Alemanha. Por outro lado, os Ofícios Diários tinham um papel muito mais importante na vida da Igreja da Inglaterra do que jamais tiveram na Alemanha ou na Escandinávia. Aqui, a manutenção da "obrigação de coro", com o conseqüente dever de diáconos, ministros e bispos, de dizer as Matinas e Vésperas todos os dias, se possível em público, gerou os cultos diários nas catedrais e nas principais paróquias. A preservação de coros profissionais em tempo integral, bem como dos órgãos, logo garantiu que música sacra de alto nível fosse composta para o Ofício Diário. Isso levou ao grande feito, peculiarmente anglicano, dos Ofícios Diários corais de Matinas e Vésperas.

Na próxima parte, eu prometo investir algum tempo examinando os Trinta e Nove Artigos, e de que forma eles trilham um caminho intermediário entre Wittemberg e Genebra.

Nenhum comentário: