segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O uso do "Sursum corda" em Calvino

por Jack Kinneer

Originalmente publicado em Roots of Reformed worship, n. 6, 1998.

Embora Calvino tenha dado a seu manual de culto de 1542 o título de A Forma das Orações e o modo de ministrar os Sacramentos segundo o uso da Igreja antiga, há pouca conexão textual entre a liturgia de Calvino e as fórmulas litúrgicas da antiguidade. Muitos dos elementos considerados clássicos não estão presentes em sua Forma das Orações. Ele não usa o Kyrie eleison, o Agnus Dei, o Te Deum, o Gloria in excelsis ou o Sanctus. Contudo, em um ponto de sua liturgia, Calvino decidiu conservar um trecho de um texto litúrgico antigo. Este texto é normalmente chamado de Sursum corda.
Elevemos os corações.
Ao Senhor os elevamos.
A versão de Calvino do Sursum corda vem depois das orações da Comunhão, não antes, como acontece nas liturgias antigas. Ele o parafraseou e transformou em um monólogo, mas ainda está ali e pode ser reconhecido. Esta é a versão de Calvino:
Tendo isto em mente, elevemos nossos corações e mentes ao alto, onde está Jesus Cristo, na glória de seu Pai, e de onde esperamos por ele para a nossa redenção.
Por que Calvino decidiu manter este pequeno trecho de texto litúrgico antigo, quando abandonou quase toda a continuidade textual com a missa medieval e, portanto, com as fontes antigas da missa medieval? Antes de explorarmos esta questão, precisamos nos fundamentar na interpretação do Sursum corda entre os Pais da Igreja, com quem Calvino era bem familiarizado.

Primeiras fontes do Sursum corda

Nossa fonte mais antiga para o Sursum corda está na Tradição apostólica de Hipólito, cap. 4, escrita aproximadamente em 215. Aqui, já temos todo o diálogo pré-eucarístico que será parte de praticamente todas as liturgias até a Reforma:
O Senhor esteja convosco.

Ao que respondem:

E com o teu espírito.
Vossos corações ao alto.
Temo-los com o Senhor.
Demos graças ao Senhor.
Isto é digno e justo.
A testemunha mais antiga do Sursum corda em latim, e seu primeiro comentário conhecido, estão em Cipriano, Da Ceia do Senhor, cap. 31. Cipriano foi martirizado em 258. É certo, portanto, que o Sursum corda é um texto litúrgico bem antigo, de uso amplamente disseminado pelo início do século III. Nossas fontes não chegam a antes disso, mas, dados os paralelos bíblicos ao Sursum corda, suas origens são provavelmente mais antigas. A ideia de subir à presença de Deus no céu está muito bem urdida na religião bíblica (Cl 3.1-2, Ef 2.6, Hb 12.22ss, Fp 3.20-22, Ap 4.1).

O Sursum corda como uma convocação ao céu

A partir de Orígenes, o Sursum corda passou a ser compreendido como uma convocação ao céu, como uma ascensão mental à presença de Deus. Ele convoca os fiéis não apenas a se concentrarem na oração, mas a estarem mentalmente voltados ao céu. Cristo subiu ao céu, e o céu é a verdadeira morada do cristão. Portanto, faz sentido, teologicamente, que o cristão eleve seu coração ao céu. Cipriano escreve:
Ademais, quando ficamos de pé para a oração, meus amados irmãos, devemos estar alerta e aplicados em nossas petições, de todo coração. Longe vá todo pensamento carnal e mundano; que a mente não se detenha em nada, a não ser naquilo pelo qual ela ora. Portanto, que também o sacerdote, antes de sua oração, prepare as mentes dos irmãos, dizendo, primeiro, um prefácio: "Elevai os vossos corações", de modo que, quando o povo responder "Elevamo-los ao Senhor", eles estejam advertidos de que nada mais devem considerar, senão o Senhor.
Nesta passagem, Cipriano comentava a Oração do Senhor, e em especial a atitude exigida na oração. Ele cita o Sursum corda como evidência da necessidade de sinceridade e concentração no ato de orar. Embora fosse esta a sua preocupação, e não o ter a mente voltada ao céu, ele não obstante explicou o Sursum corda como referindo-se essencialmente à ascensão ao céu. Os cristãos, segundo Cipriano, não deveriam ter nada mais em mente neste momento, senão o Senhor, que está no céu.
Semelhantemente, Cirilo de Jerusalém escreveu, nas Catequeses mistagógicas:
O celebrante, então, conclama: "Elevai os vossos corações". Pois é verdadeiramente correto que, nesta hora mais auspiciosa, cada um tenha seu coração no alto, fito em Deus, não cá abaixo, ocupado com a terra e com as coisas terrenas. Com efeito, portanto, o bispo instrui a todos que deixem seus pensamentos mundanos e preocupações cotidianas, e que tenham seu coração no céu, junto ao bom Deus. Ao assentir, você responde "Temo-los com o Senhor". Que nenhum dos presentes tenha a desfaçatez de que, ao mesmo tempo em que seus lábios pronunciam "Temo-los com o Senhor", sua atenção esteja dirigida a pensamentos mundanos.
Cirilo, em sua interpretação do Sursum corda, enfatiza expressamente a ideia de ter a mente voltada ao céu. Pensamentos mundanos devem ser dispensados, e o coração deve estar no céu, onde está o bom Deus. A mesma ênfase se evidencia nas seguintes citações de sermões de Agostinho (n.ºs 227, 261 e 3, respectivamente):
Primeiro, após a oração, você é orientado a elevar seu coração. Isto é apropriado aos membros de Cristo. Pois, se vocês são membros de Cristo, onde está sua Cabeça? Membros têm uma cabeça. Se a Cabeça não os precede, não se lhe seguem os membros. Aonde foi sua cabeça? O que você recitou no Credo? Que "ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, subiu ao céu e está sentado à destra do Pai". Portanto, a nossa Cabeça está no céu. Assim, quando se diz "Elevai os vossos corações", você responde "Levantamo-los ao Senhor". Em seguida, visto que este elevar do seu coração a Deus é um dom do próprio Deus, e para que você não considere o seu coração estar em Deus como fruto de sua própria força e méritos, após a resposta "Levantamo-los ao Senhor" o bispo ou sacerdote celebrante também diz: "Demos graças ao Senhor, nosso Deus", pois temos nossos corações elevados a ele.

A Ressurreição de Nosso Senhor é a nossa esperança; a Ascensão do Senhor é a nossa exaltação. Ora, hoje estamos celebrando a Festa da Ascensão. Se, portanto, celebramos a festa da Ascensão do Senhor com a devida cerimônia, com fé, devoção, santidade e reverência, ascendamos com ele e tenhamos nossos corações elevados a ele.

Ademais, embora ascendamos, não nos deixemos inflar. De fato, devemos elevar os nossos corações, mas ao Senhor. Pois mesmo os santos que habitam na terra, embora em seu corpo caminhem pela terra, em seu coração habitam no céu. Pois não é em vão que somos lembrados a "elevar os corações" e, uma vez assim lembrados, respondemos que nosso coração está elevado. Nem é em vão que é dito "Se estais ressuscitados com Cristo" (...).
Estas citações ilustram que o Sursum corda tinha uma clara e bem consolidada interpretação. Ao início das orações eucarísticas, o povo era convocado a ter suas mentes voltadas ao céu. Eram convocados à presença do Senhor no céu pelo celebrante. O que Calvino viu no Sursum corda e sua interpretação foi um testemunho contra a doutrina eucarística medieval que ele mais abominava: a transubstanciação.

A teologia eucarística de Calvino

Para Calvino, a transubstanciação era uma doutrina horrível que produzia um sem-número de práticas idólatras. Ele ridicularizava a adoração à hóstia, a noção de esmagar o corpo de Cristo com os dentes e as procissões pelas ruas com o pão consagrado, tudo isso decorrência necessária da transubstanciação. Mas em sua raiz, a transubstanciação envolvia uma corrupção da doutrina a respeito de Cristo. Pois, se Cristo era material e corporeamente comido na missa, então sua carne humana não seria mais humana. Somente se a carne humana de Cristo partilhasse do atributo divino da onipresença ele poderia ser comido em vários lugares ao mesmo tempo e mesmo assim não ser consumido. Calvino via nisso uma corrupção do antigo consenso do Concílio de Calcedônia. Na cristologia calcedoniana, conforme Calvino a compreendia, não poderia haver confusão das propriedades das naturezas divina e humana de Cristo, mas somente uma união hipostática de ambas, imaculadas, na pessoa de Deus, o Verbo. Calvino compreendia a communicatio idiomatum como a comunhão de uma pessoa em duas naturezas. Ele escreveu (Institutas, IV.17.12):
Pois assim como não duvidamos de que o corpo de Cristo esteja limitado pelas características gerais comuns a todos os corpos humanos, e que está contido no céu (onde foi recebido de uma vez por todas) até que retorne no juízo, assim consideramos de todo ilegal imaginar que seja trazido de volta sob estes elementos corruptíveis, ou que ele esteja presente em toda parte.
Para Calvino seria "ilegal" compreender o pão e o vinho como transubstanciados no corpo e no sangue de Cristo. O corpo e o sangue de Cristo estão no céu, não na terra. Se temos comunhão com o corpo e o sangue de Cristo, não é porque Cristo é trazido cá abaixo junto a nós nos elementos terrenos do pão e do vinho, mas sim porque nós é que somos elevados ao céu, onde Cristo está. Neste ponto podemos ver por que o Sursum corda interessaria a Calvino.

Embora negasse uma presença corpórea na Ceia, o reformador era irredutível em que o cristão é verdadeiramente partícipe da carne de Cristo. Ele rejeitava a noção de que o comer e beber do corpo e do sangue de Cristo fossem meramente uma metáfora para a fé. Ao contrário, pela fé somos feitos partícipes de seu corpo e sangue.
A verdade de Deus, portanto, na qual eu posso descansar seguro, eu recebo sem polemizar. Ele declara que sua carne é comida, que seu sangue é bebida para a minha alma. Entrego a ele minha alma para que seja nutrida com tal alimento. Em sua Santa Ceia, ele me ordena tomar, comer e beber seu corpo e sangue sob os emblemas do pão e do vinho. Não tenho dúvida de que ele verdadeiramente mos dará, e de que eu os receberei (Institutas, IV.17.2).
A comunhão com Cristo em sua natureza humana não é apenas uma parte da doutrina eucarística de Calvino, mas é essencial a sua soteriologia. Para Calvino, a salvação não apenas se realizou por nós na carne de Cristo, mas ela só nos pode ser comunicada através da carne de Cristo.
A carne de Cristo concede vida, não somente porque uma vez obtivemos salvação por meio dela, mas porque hoje, enquanto somos feitos um com Cristo por uma união sagrada, a mesma carne inspira vida em nós, ou, para expressá-lo de modo mais sucinto, porque, enxertados no corpo de Cristo pela atuação misteriosa do Espírito, temos vida em comum com ele (Corpus reformatorum, 9.30-31).
Calvino acreditava em verdadeira comunhão, mas não em presença real, no sentido de uma presença corpórea. Cristo está corporeamente ausente de nós. Mas temos comunhão com seu corpo. Somos partícipes de sua carne e sangue. De fato, sem tal participação, não poderíamos ser salvos. Para Calvino, este é um mistério tornado possível pelo poder secreto do Espírito Santo. Não podemos compreendê-lo, mas devemos crê-lo.
Embora pareça inacreditável que a carne de Cristo, separada de nós por tão imensa distância, penetre em nós de modo a se nos tornar alimento, relembremo-nos do quanto o poder secreto do Espírito Santo se alteia acima de nossos sentidos, de quão tolo nos é querer medir sua imensurabilidade por nossas próprias medidas. Aquilo, portanto, que nossas mentes não compreendem, deixemos que a fé conceba: que o Espírito verdadeiramente une coisas que estão separadas no espaço (Institutas, IV.17.10).
Assim, portanto, para Calvino, havia uma profunda convicção, aprendida das Escrituras e dos Pais da Igreja, de que a Comunhão com Cristo é necessária para a salvação. Calvino encontrou nos Pais tanto um reconhecimento desta doutrina quanto também textos que se aproximavam demais da transubstanciação para o seu gosto. Embora fosse um estudioso dos Pais, era também crítico deles em certos pontos. Ele não se sentia à vontade com a terminologia de conversão dos elementos, que considerava infeliz. Estava convicto, porém, de que a transubstanciação era uma doutrina tardia, em desacordo com a fé da Igreja antiga.

Calvino recorre ao Sursum corda

Calvino encontra no Sursum corda um testemunho da natureza celestial da Ceia, contrário à ideia de transubstanciação. Ele via o texto do Sursum corda como definidor da esfera de atuação do sacramento que introduz. A convocação ao céu aponta para a realidade do sacramento como celestial, e não terreno. Duas vezes, em sua exposição da doutrina da Ceia do Senhor, ele recorre ao Sursum corda (Institutas, IV.17.18; IV.17.38). Nesta última, lemos:
Pois, para que as almas piedosas possam apreender devidamente o Cristo na Ceia, devem ser elevadas ao céu. Mas se a função do Sacramento é auxiliar a débil mente humana, de modo que possa se elevar para contemplar a altura dos mistérios espirituais, então aqueles que erram no sinal externo se desviam da forma correta de se buscar a Cristo. E então? Devemos negar que seja supersticioso o culto em que homens se prostram perante pão para neste adorar a Cristo? Sem dúvida o Concílio de Niceia pretendia impedir este mal quando nos proibiu fixar nossa humilde atenção nos símbolos postos diante de nós. E pelo mesmo motivo estabeleceu, na antiguidade, que antes da consagração o povo deveria ser instruído em alta voz a elevar seus corações. A própria Escritura não apenas nos narra cuidadosamente a ascensão de Cristo, pela qual ele retirou a presença de seu corpo de nossa vista e companhia, para nos afastar de todo pensamento carnal a seu respeito, mas também, sempre que nos lembra dele, nos orienta a elevar nossas mentes e a buscá-lo no céu, sentado à destra do Pai (Cl 3.1-2). Por esta regra, devemos adorá-lo espiritualmente em glória celestial, e não desenvolver qualquer perigosa forma de adoração, repleta de uma noção carnal e grosseira de Deus.
Quando Calvino emprega o Sursum corda em sua Forma das orações, ele o faz tanto como um argumento contra a transubstanciação como também como uma convocação a uma fé orientada ao céu. Fica patente nas Institutas que Calvino considerava este o sentido correto do Sursum corda. O último parágrafo de sua exortação à Comunhão reza:
Com isto em mente, elevemos nossos corações e mentes ao alto, onde está Jesus Cristo, na glória de seu Pai, de onde esperamos por ele para a nossa redenção. Não nos prendamos por estes elementos terrenos e corruptíveis, os quais vemos com os olhos e tocamos com as mãos, de modo a neles buscá-lo, como se pudesse estar contido no pão ou no vinho. Somente assim nossas almas estarão prontas a serem alimentadas e vivificadas por sua substância, quando são, assim, elevadas acima de todas as coisas terrenas, e elevadas ao próprio céu, para adentrar o reino de Deus onde ele habita. Contentemo-nos, portanto, em ter o pão e o vinho como sinais e provas, buscando espiritualmente a realidade em que a Palavra de Deus nos promete que a encontraremos
Análise

O que podemos compreender, portanto, do uso que Calvino faz do Sursum corda? Estaria ele correto em vê-lo como um testemunho da antiguidade contra a transubstanciação? Em primeiro lugar, o uso que Calvino faz do Sursum corda não é arbitrário. Desde os mais antigos comentários ele era compreendido como uma convocação ao céu e um chamado a termos nossas mentes voltadas ao céu. Calvino não inventou isso. Contudo, não há indícios de que qualquer um tenha percebido o Sursum corda como uma reflexão sobre o mistério da Comunhão antes de Calvino. Os Pais da Igreja não parecem interessados na questão de "como" nós temos comunhão com Cristo, da forma como tem sido formulada desde que se iniciou o debate acerca da transubstanciação. Eles usaram tanto a terminologia de símbolo quanto a terminologia de identidade. O pão é símbolo do corpo de Cristo no céu, e o pão é o corpo de Cristo. Agostinho, porém, fazia uma clara distinção entre o sinal sacramental e a realidade celestial. Calvino citou Agostinho, aprovando-o:
Aquele que comer não morrerá, querendo dizer aquele que recebe o poder do sacramento, não o sacramento visível; aquele que o come interiormente, não exteriormente; aquele que come com o coração, não aquele que mastiga com os dentes (Evangelho de João, 25.15, citado nas Institutas, IV.14.14).
Em Agostinho, Calvino encontrou todas as ideias centrais de sua própria doutrina dos sacramentos. Ele encontrou a distinção entre sinal e realidade, a realidade da comunhão à parte da transubstanciação, e a ideia de ascensão na interpretação de Agostinho do Sursum corda. A inovação de Calvino foi combinar esses aspectos em um só, usando o Sursum corda como chave. Dada a importância teológica do Sursum corda para a compreensão reformada da Ceia do Senhor, parece-nos sábio restaurar este texto litúrgico em nossas celebrações. Quer seja uma paráfrase dita pelo pastor, quer seja um diálogo entre o pastor e o povo, o Sursum corda deve ser parte das liturgias das igrejas reformadas por ser uma parte tão importante de nossa teologia. E que ele forneça também um ponto de continuidade com as liturgias da antiguidade, é mais uma vantagem.

Tradução: Eduardo Henrique Chagas, 2017.

 Referência para citação:

KINNEER, Jack. O uso do "sursum corda" em Calvino. Sociedade pela liturgia reformada. Trad. Eduardo Henrique Chagas. Disponível em [http://liturgiareformada.blogspot.com.br/2017/01/o-uso-do-sursum-corda-em-calvino.html], acesso em 16 jan. 2017.

2 comentários:

Nilson dos Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nilson dos Santos disse...

Graça e paz!
Excelente blog! Gostaria de saber como introduzir na liturgia Eucarístia o Sursum corda sem assustar a igreja. Eu sou licenciado na IPB no Rio, nunca vi num culto de Ceia na Presbiteriana uma liturgia com Grande Oração de Ação de Graças, e na maioria os pastores por aqui celebram de modo bem batista (Zwingliano). Gostaria muito que os nossos cultos tivessem essas lindas tradições litúrgicas que não ferem a fé calvinista.