segunda-feira, 9 de maio de 2011

Liturgia: Manual para o Culto Público

Veio-me às mãos o volume Liturgia: manual para o Culto Público, publicado em 1942 pela extinta Confederação Evangélica do Brasil. Pretendo fazer aqui uma descrição e avaliação do seu conteúdo, já que, de sua história em particular, não consegui obter muito.

Confederação Evangélica do Brasil

A CEB foi o mais representativo órgão pan-protestante na história do Brasil. Embora também houvesse entre eles luteranos e anglicanos, a maior representatividade em seu corpo era dos chamados "protestantes de missão" (principalmente presbiterianos, metodistas e congregacionais), de persuasão mais evangelical.



Além de ter promovido importantes congressos em sua época, a CEB foi também responsável pela compilação e edição do Hinário Evangélico (1945), originalmente concebido como um hinário pan-protestante, alternativa propriamente litúrgica ao então já antigo Salmos e Hinos, da Igreja Congregacional e de tônica mais avivalista/evangelística. O HE é, provavelmente, o legado mais duradouro da CEB.

Interessante notar que os metodistas sempre foram os maiores envolvidos nesse órgão (a Imprensa Metodista foi quem imprimiu suas publicações), e foram a única denominação a adotar o HE como hinário oficial, o que fazem até hoje (a despeito do projeto de um novo hinário). A Igreja Presbiteriana do Brasil, que desde os anos 1960 lutava para conseguir organizar e publicar o seu próprio, deixou as igrejas locais à vontade para escolher seu hinário nesse meio tempo. A imensa maioria das congregações adotou o HE até a publicação do Novo Cântico em 1989. A Igreja Presbiteriana Independente, por outro lado, permaneceu firme na adoção do SH até a publicação, em 2003, do Cantai todos os povos. E os congregacionais jamais abandonaram seu próprio hinário, atualizado pela última vez em 1975.

A Confederação, devido a sua preocupação com a responsabilidade social da Igreja, manifesta principalmente em seus últimos congressos, em fins da década de 1950 e início da de 1960, foi forçosamente dissolvida a partir do golpe militar de 1964.

Liturgia: Manual para o Culto Público


O volume traz seu Imprimatur no verso da folha de rosto: "Esta LITURGIA foi elaborada por uma Comissão especial, e aprovada pela 4.ª Assembléia da Confederação Evangélica do Brasil em julho de 1942".

Segue com um prefácio intitulado "Preliminares", no qual afirma seu caráter facultativo, oferecido que é às "Igrejas que, não fazendo uso de liturgias tradicionais [a exemplo do luteranismo e do anglicanismo, N.E.], desejem adotar novas fórmulas, que possam melhorar o culto e que se adaptem às suas circunstâncias" (p. 3).

Antônio Gouvêa Mendonça, em Introdução ao protestantismo no Brasil (Loyola, 2002, p. 197), com efeito destaca o estado de aridez em que se encontrava o culto protestante de missão no Brasil em fins do século XIX e início do século XX.A despeito das teologias oficiais das diversas denominações, o culto de todas elas muito se assemelhava não com qualquer ordem de Culto Público histórica de suas tradições, mas sim com as Revival Meetings, as conferências e acampamentos característicos do avivalismo de fronteira norte-americano do final do século XIX: orações entremeadas de cânticos num ambiente altamente emocional, culminando com uma prédica sempre de tema evangelístico, e concluída com um apelo emotivo à conversão ou reconsagração de vida. Os Sacramentos eram considerados meros apêndices do Culto, e por vezes até mesmo como entraves à tarefa, considerada central, do evangelismo.

 As Preliminares delineiam também rubricas gerais para a execução do Culto. Explicam o esquema geral de todas as 15 Ordens Litúrgicas incluídas no volume (chamadas "Programas"), que seguem o padrão avivalista de Invocação-Adoração-Confissão-Absolvição-Louvor-Ofertório-Edificação-Conclusão, baseado no texto de Isaías 6. Cada uma das ordens tem uma ênfase especial em adoração, confissão ou edificação. Também indicam a intenção de que o Culto seja diálogo entre Deus e o homem (diferente da ênfase corrente da época, em que o Culto era uma grande palestra dada pelo homem tendo Deus como assunto).

Outra rubrica de destaque é a de que cada oração feita no Culto limite-se ao assunto ou ao ato litúrgico que ocorre no momento, algo que deveria ser reforçado ainda hoje (quantas vezes na oração de Confissão de Pecados não se pede a aceitação do Culto -- sobre a qual, em tese, já se pediu no início -- se agradece também a liberdade de Culto, pede-se que Deus "toque" os corações dos irmãos faltosos, abençoe o pastor que trará "a mensagem" e ainda divaga-se por qualquer assunto que tenha ocupado a mídia na semana?). Também recomenda-se que os hinos escolhidos reflitam o ato litúrgico a que servem de preparação ou resposta.

Merece destaque, ainda, a rubrica sobre coros (ou, em São Paulo, "corais"), de que, nas igrejas que os tiverem, a música escolhida seja realmente sacra, e que eles cantem sem anúncio ou apresentação, o que também serviria muito bem para os "ministérios" de "louvor" contemporâneos.

Também recomenda-se que sejam evitados anúncios no decorrer da Liturgia, pois "perturbam a harmonia do serviço litúrgico". As leituras bíblicas e números dos hinos deveriam ser dispostos em quadros à frente da congregação, de modo que seu anúncio fosse dispensável.

Aconselha-se que, quando a mobília da igreja o possibilitar, as orações de confissão e de edificação sejam feitas com o povo de joelhos.

Por fim, avisam que os textos bíblicos do volume são extraídos da tradução de Almeida (à época, versão Revista e Corrigida) e as músicas, do Hinário Evangélico, então em fase de elaboração pela CEB.

Os "Programas" de Culto

Os chamados "Programas", como já dissemos, seguem a estrutura geral do culto avivalista. Principiam sempre com o ato de Invocação e Adoração, consistente de versículos bíblicos lidos pelo "Dirigente", seguidos de uma leitura uníssona ou alternada pela congregação, ou um hino.

No ato de Confissão, o oficiante faz um chamado à penitência, ou a congregação faz uma leitura bíblica responsiva, seguindo-se oração silenciosa e oração pública feita pelo "Dirigente". Segue-se uma absolvição bíblica.

Como ato de Louvor, entoa-se um hino.

Inclui-se, no ato de Edificação, uma possível leitura bíblica alternada, um hino, leitura bíblica e sermão pelo pregador, a Oração do Senhor ou o Credo Apostólico.

Como Conclusão, segue-se um hino e a Bênção.

Os Programas 13 e 14 trazem o Sacramento da Comunhão após a Conclusão, omitindo a Bênção, com a simples rubrica: Após esta preparação geral, a Santa Ceia do Senhor será ministrada, conforme o ritual preferido; e com esse ato solene, encerra-se o culto.

O Programa 15 é o mais interessante, por trazer uma proposta de ritual para a Santa Ceia com um sabor que lembra, surpreendentemente, o anglicano (por influência metodista, sem dúvida). Também é curioso que inverta a ordem geral do Culto, começando com Invocação e Adoração e seguindo-se imediatamente a Edificação, com uma "Breve Meditação" no lugar do Sermão. A Confissão é deixada como preparação para a participação no Sacramento da Comunhão.

A ordem começa com uma sentença bíblica pelo oficiante, uma oração congregacional responsiva, outra sentença bíblica e o cântico do Gloria Patri: "Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo; como era no princípio, é agora e será sempre; por todos os séculos. Amém."

Segue-se a Edificação ("Breve Meditação" seguida de um hino) e passa-se ao longo ato de Confissão.

Este traz o Decálogo seguido da petição congregacional "Senhor, compadece-te de nós e inclina nossos corações a guardar esta lei", prática notoriamente anglicana.

Também traz uma leitura responsiva de salmos penitenciais seguida do cântico do Agnus Dei: "Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo, tem misericórdia de nós e dá-nos a tua paz".

Passa-se à Confissão Geral de pecados, lida em uníssono pela igreja, seguida da absolvição, também traduzida da liturgia anglicana.

Segue-se um ato de Preparação para o Sacramento, em que se convida a Igreja a, cada um examinando-se a si mesmo, participar da Mesa do Senhor. Lê-se as Palavras da Instituição, seguidas de um hino eucarístico.

Então segue-se a Consagração dos elementos eucarísticos, com duas opções para a sua distribuição (vindo os fiéis à Mesa, ou conservando-se nos bancos, ajoelhando-se ou permanecendo de pé), sempre começando com a comunhão do ministro e dos oficiais, depois a do povo. Durante a distribuição, recita-se a fórmula anglicana:

O Corpo de Nosso Senhor Jesús Cristo, que foi dado por vós, conserve a vossa alma e o vosso corpo para a vida eterna. Tomai e comei, em memória de haver Cristo morrido por vós, e dele alimentai-vos em vosso coração, pela fé, com ações de graças.

O Sangue de Nosso Senhor Jesús Cristo, que foi derramado por vós, conserve a vossa alma e o vosso corpo para a vida eterna. Bebei, em memória de haver sido o sangue de Cristo derramado por vós, e sede agradecidos.

Segue-se ato de Consagração da congregação, com sentença bíblica, hino e a recitação do Credo Apostólico. Como Conclusão, o ministro impetra a Bênção.

Leituras Bíblicas

O Liturgia difere dos Manuais de Culto denominacionais pelo fato de que era sua intenção que não apenas os pastores, mas também as igrejas o tivessem em mãos durante o Culto, como fazem principalmente os anglicanos. A marca maior disto é o capítulo com 52 leituras bíblicas responsivas, coladas de textos bíblicos diversos, e correspondentes aos diferentes atos do Culto, segundo os 15 "Programas" litúrgicos fornecidos.

E, se hoje, a prática de leituras responsivas no Culto é corriqueira, vale lembrar que no fim do século XIX e até o começo do século XX, a leitura bíblica era considerada prerrogativa do ministro ou oficiante do culto, devendo os fiéis acompanhá-la silenciosamente em suas próprias bíblicas. Nos Estados Unidos, de fato, igrejas se dividiram por causa da introdução dessa "inovação", sendo a participação vocal da congregação (exceto por hinos, pela Oração do Senhor e, ocasionalmente, do Credo Apostólico) vista com desconfiança como influência anglicana.

Bênçãos

Há um capítulo, de uma só página, contendo cinco bênçãos bíblicas para uso na conclusão do Culto.

Cânticos

Talvez mais digno de nota seja o capítulo de cânticos, contendo alguns que acabaram não entrando na composição do Hinário Evangélico, tais como versões diferentes do Gloria Patri, com músicas de William Jackson e Franz Joseph Haydn, um Kyrie Eleison com música de Thomas Tallis, e um Agnus Dei anônimo.

Conclusão

De um ponto de vista litúrgico, o Liturgia não é uma obra inovadora; não promoveu ruptura com o padrão vigente do Culto avivalista, e muito provavelmente não teria sucesso em seu tempo se o tentasse. Sua intenção não era essa. O que ele de fato se propôs a ser, foi uma tentativa bem informada de melhorar a qualidade do Culto Público de sua época, promovendo uma maior fluidez na sua execução, uma maior variedade nas leituras bíblicas, uma maior familiaridade com os cânticos litúrgicos históricos, uma maior integração entre os atos do Culto por meio também da adequada seleção da hinódia; enfim, de alguma forma amenizar a aridez das "conferências evangelísticas com prelúdio musical" em que o Culto havia se transformado.

A notícia histórica que temos, sobretudo da obra de Mendonça (2002, p. 197), é que ele não teve grande alcance em sua proposta. Não foi adotado em larga escala por nenhuma denominação, mesmo a metodista, sua maior promotora. Presbiterianos e Metodistas permaneceram com seus Ritual e Manual do Culto próprios, em que, embora empregassem o mesmo esquema básico de Culto baseado em Isaías 6, o faziam com menor ênfase e detalhes na forma de execução, julgando ocioso falar de algo que, em tese, e apenas em tese, "todo mundo sabe fazer".

A obra tem, no entanto, seus méritos, e merece ser lembrada por eles, pela ousadia de tentar promover reformas e melhoras numa área tão sensível (de fato, talvez a mais sensível de toda eclesiologia) como é a Liturgia.

3 comentários:

ML disse...

Acho lamentável que a CEB tenha sido extinta.

Anônimo disse...

Sou da assembléia de Deus,porém sou reformado e temos ensinado a teologia reformada a nossa congregação,porém estamos sentindo a necessidade de uma reforma da nossa litúrgia,tenho me espalhado no livro de orações comum,porém nossa congregação ainda não têm estrutura para recitamos o pai nosso e o credo e algumas práticas que eles considera "papistas",se você poder me dar umas dicas de elementos litúrgicos ficar-lhe ei grato.
Samuel samuelenfermagem@yahoo.com

Eduardo H. Chagas disse...

Samuel, acho que o caminho para um resgate litúrgico começa pelo "esqueleto" da ordem do Culto. Principalmente porque você está numa Igreja que valoriza a intervenção do Espírito Santo no próprio andamento da cerimônia.

Então, sem diminuir a liberdade que é marca do Culto da AD, convém combinar com o pastor, ou com o dirigente do trabalho, uma ordem geral, um esquemão. Algo simples, do tipo:

Saudação
Confissão de Pecados
Louvor
Leitura Bíblica e Pregação
Testemunhos e Oportunidades (?)
Intercessão
Santa Ceia (quando houver)
Despedida

Não sei se essa é a ordem usada na AD, pode ser adaptada à realidade de vocês.

Mas entendo que o caminho pode ser incluir o Pai Nosso nos dias de Santa Ceia, no final da Oração de Consagração e antes da distribuição dos elementos. Por ser um momento mais solene, entendo que é o lugar ideal para introduzir elementos mais litúrgicos sem causar escândalo.

A mesma coisa vale para o resgate do Credo. Ele pode ser introduzido como resposta dos catecúmenos imediatamente antes do Batismo. Que é o lugar dele na liturgia histórica!

Fica com Deus, grande abraço!