sábado, 2 de abril de 2011

A Liturgia de Calvino na Igreja de Genebra

Introdução

A Liturgia de Genebra, segundo praticada pelo Reformador João Calvino, é historicamente considerada o ponto de partida de toda a prática litúrgica reformada e, de certa forma, influenciou toda a prática litúrgica protestante.

A História nos informa que houve dois momentos distintos na prática litúrgica de Calvino. A princípio, sua primeira estadia em Genebra (1536-1538), durante a qual limitou-se a continuar praticando a Liturgia adotada por seu colega, anfitrião e antecessor, Guilherme Farel, a qual trazia alguma influência da chamada Reforma Radical. Notava-se por isso, na primeira Liturgia reformada de Genebra, um menor aproveitamento de textos e elementos litúrgicos da tradição cristã histórica, posto que ainda associados, tanto no imaginário popular quanto no de boa parte dos próprios Reformadores, com a liturgia romanista à qual passavam a abjurar.

Após uma série de tensões e desentendimentos com o Conselho da Cidade de Genebra, Calvino e Farel acabaram expulsos da cidade. Farel recebeu um convite para dirigir a Igreja em Neuchâtel; Calvino foi convidado a pastorear uma igreja de refugiados estrangeiros em Estrasburgo.

Durante seu exílio em nesta cidade (1538-1541), Calvino foi profundamente influenciado pela teologia e principalmente pela prática litúrgica de seu mais experiente e principal Reformador, Martin Bucer (o qual também exerceu, posteriormente, profunda influência na elaboração dos Trinta e Nove Artigos de Religião e dos primeiros Livros de Oração Comum anglicanos).

A prática de Bucer, mais afeita e tolerante ao uso de formas e textos da tradição cristã histórica na Liturgia, veio a moldar a própria abordagem de Calvino; tanto que, quando este publicou sua própria Liturgia, a intitulou A Forma das Orações e Hinos da Igreja, com o Modo de Ministração dos Sacramentos e a Forma para a Celebração do Matrimônio, segundo o Uso da Igreja Primitiva. A abordagem de Calvino e Bucer, portanto, não se constituía num simples expurgo, ou em uma “reinvenção da roda” a partir do zero, mas numa intenção de regresso às formas praticadas pela Igreja primitiva. Foi com essa abordagem que Calvino regressou a Genebra em 1541, após grande insistência por parte do Conselho da Cidade, o qual, acossado por dificuldades internas e externas, reconsiderara as expulsões de Calvino e Farel.

Muitos autores já fizeram notar que a Liturgia de Calvino é pouco responsiva quanto a suas partes faladas: o Ministro sozinho lê a Liturgia; o Ministro sozinho lê e expõe as Escrituras; o Ministro sozinho lê ou faz extemporaneamente todas as orações, às quais o povo simplesmente responde “amém”.

Já se disse, não sem propriedade, que no Culto de Calvino “a liturgia do povo é cantar”. Com efeito, as únicas partes faladas por todo o povo são o Credo Apostólico e a Oração do Senhor. Todas as demais participações da congregação são cantadas na forma de Salmos e outros textos bíblicos musicados, além de alguns poucos hinos tradicionais, como respostas entoadas a cada ato do Culto dirigido pelo Ministro.

Esta característica do Culto de Genebra já foi empregada como justificativa para rejeitar qualquer forma de desenvolvimento de responsos falados pela congregação na Liturgia das igrejas reformadas. E mesmo os responsos cantados foram objeto de expurgo em alguns desenvolvimentos posteriores da Reforma, sobretudo os mais estritos quanto à salmodia (que chegaram ao extremo de excluir até mesmo o canto de outros textos bíblicos no Culto).

Na verdade, os responsos do povo não foram eliminados da Missa medieval. Eles não existiam nela. Todos os responsos na Liturgia romana da época eram feitos entre o sacerdote e o coro, ou entre aquele e um acólito, assim como são, até hoje, na Liturgia das igrejas ortodoxas orientais. A função do povo nessas Liturgias era contemplar em silêncio a realização dos santos mistérios, não participar dela. O Culto, na Liturgia medieval, era sacrifício oferecido a Deus pelo sacerdote em benefício do povo, em uma relação de analogia e continuidade com a prática do Antigo Testamento.

Assim, a ausência de responsos do povo na verdade não foi uma subtração; os reformados concentraram na figura do Ministro simultaneamente os papéis do sacerdote e de boa parte dos textos do coro ou do acólito, transformando todo esse conteúdo litúrgico em prosa corrida, a qual era lida exclusivamente pelo Ministro. Um desenvolvimento diferente, portanto, do que ocorreu com os luteranos e anglicanos, os quais entregaram o papel do coro ou acólito ao povo.

Outra característica da Liturgia genebrina que se perpetuou em formas que dela descenderam é uma certa medida de prolixidade, tanto nas orações quanto na Exortação pré-eucarística. É importante notar, no entanto, o contexto dos primeiros liturgistas reformados e sua intenção na elaboração de seus textos.

A Reforma Protestante era fenômeno recente, e o povo não se encontrava, em sua maior parte, catequizado nos princípios e doutrinas desse cristianismo recém-reformado. De modo que eles não apenas transferiram os textos do sacerdote e do coro para o Ministro, mas ainda os reescreveram, ampliando-os em vista da agenda teológica da Reforma.

Ora, as Escolas Dominicais nos moldes contemporâneos, como instrumentos de educação cristã continuada, não surgiram senão no final do século XIX, e a catequese era considerada um fardo destinado às crianças. Restava aos Reformadores valerem-se da Liturgia dominical, à qual todos eram obrigados a comparecer, como instrumento de doutrinação do povo, por meio da reiterada leitura dos mesmos textos, das mesmas doutrinas, domingo após domingo.

É certo que Calvino, mesmo ao fim da sua vida, não julgava sua Liturgia e a prática litúrgica de Genebra como obras prontas, acabadas e irretocáveis. Ele mesmo deixou muitos comentários e críticas, principalmente em suas cartas, para que seus sucessores pudessem encaminhar as devidas correções, a seu tempo. Assim, nem mesmo hoje, quando republicamos e estudamos sua Liturgia, deveríamos nós adotar servilmente a Forma como aqui a vemos, como se a tentar regressar à situação de Genebra no século XVI. Antes, é nosso papel examinar o espírito desta Liturgia, à luz do contexto de sua época e de sua intenção principal, a qual era instruir o povo na sã doutrina cristã, de modo a assim informar e reformar nossa própria prática litúrgica, em nosso tempo e lugar.

E é nesse desejo que a Sociedade pela Liturgia Reformada agora publica a Liturgia da Igreja de Genebra, segundo legada pelo Reformador João Calvino, com algumas poucas adaptações em suas rubricas de modo a permitir sua execução, mas cujo texto permanece fiel aos originais recebidos.

A Deus toda a glória, agora e para sempre, em Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

Franca, 3 de abril de 2011, IV Domingo na Quaresma.

Eduardo H. Chagas
Editor

O arquivo pode ser baixado aqui.

Um comentário:

Edison disse...

Ilustrìssimo Reverendo
Eduardo Chagas:

Salve!


Sou Catòlico Romano tradicionalista(daqueles q apreciam a Liturgia Tridentina...) e estudioso de liturgia por diletantismo. Entusiasmou-me descobrir seu Blog; gostaria de escrever p/ o Reverendo mas na falta de seu mail; q agradeceria se enviasse-me; espero q leia meu comentàrio-msg.

Na internet sempre encontrei vàrios BCPs; liturgias luteranas; metodistas e presbiterianas; inclusive a 1a liturgia de cada uma destas tradicões; mas nunca achei uma liturgia originalmente batista. Vossa Reverencia saberia informar qual foi a 1a liturgia batista e; quem sabe; atè disponibilizà-la p/ mim?... Procuro isto hà anos mas n acho...

Gostaria de seu endereco-e e saber de q cidade è. P/ mim romanista; embora conheca diversas liturgias reformadas e seja um apreciador do BCP elisabetano(muito melhor do q a Liturgia do Papa Paulo VI usada atualmente pela Igreja Latina!!!...); um grande apreco pela liturgia como o seu soa-me demasiado romanista p/ um Cristão Reformado... ; è-me concomitantemente incompreensìvel e admiràvel! Parabèns!



Grato;
Edison. (edisonmauro@gmail.com)