quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Saudade de Roma? Não!

Nos comentários do post  A Liturgia Evangélica 22: A Bênção, o Nilson fez um questionamento tão bom e tão pertinente, e a resposta ficou tão extensa, que acho que rende um post próprio. Aqui vai:


Prezado Eduardo,

Sou amante da liturgia, (talvez por ter sido formado no catolicismo), mas percebo que um culto litúrgico parece distante da realidade de mts na igreja atual, inclusive dos mais jovens e das comunidades cujos membros são mais simples, não sei se esta é a realidade da sua localidade.
Realizando algumas pesquisas históricas, percebi que os cultos foram sofrendo alterações litúrgicas ao passar do tempo. A minha pergunta é: Será que o ritualismo e o cerimonialismo não foge da proposta simples do culto como era realizado na igreja primitiva? Será que no primeiro século, quando as igrejas se reuniam nas casas havia toda essa preocupação fundamentado na forma?
A visão do ministro como o mediador da benção apostólica não esvazia o sacerdócio universal dos crentes, como era defendido por Lutero?
Não estamos trazendo resquício de Roma?
Desde de já quero lhe dizer que pessoalmente eu gosto mt de liturgia, apenas estou analisando historicamente e teologicamente.
Quanto o sinal da cruz durante a impetração da benção, como presbiteriano eu nunca vi nenhum ministro fazer uso, achei bem interessante ...
Um forte abraço!


Nilson,

Eu não entendo que uma liturgia mais formalmente estruturada aliene ou seja inacessível aos mais jovens ou aos mais simples. A existência de grupos ativos de jovens, e principalmente em populações mais carentes, nos meios católico-romanos, depõe diretamente contra essa idéia.

Semelhantemente, os luteranos e os anglicanos têm feito missões nos sertões e nos morros, sem mexer em suas liturgias e sem tirar os paramentos de seus pastores. Nesse caso, geralmente a via de contato e adaptação à cultura local se faz por meio da mescla e adição de música local à hinódia tradicional, e das artes sacras (paramentos feitos pelos membros da própria comunidade, por exemplo).

E mais: na minha experiência, e mesmo jovem já tenho alguma, tenho visto que a maioria das congregações vai participar com alegria do que quer que lhe for proposto em termos de liturgia. Se você imprimir boletins com responsos, eles vão seguir e participar. Se trouxer uma bandinha, eles vão cantar junto e bater palma.

Há sempre uma uma minoria em toda igreja que tem sua opinião bem formada e consolidada sobre a forma litúrgica "ideal" (tanto tradicionalistas "secos", quanto fãs de bandinhas, quanto pentecostais, quanto os high-church), e em cada igreja um ou dois desses grupos será mais ou menos barulhento e influente.

Mas os esquenta-bancos cotidianos, os membros-médios, vão, sim, participar com gosto do que quer que lhes seja proposto (e vão estar abertos para ouvir o que for ensinado sobre a forma de culto proposta, também, seja ela qual for).

Não estou dizendo que seja esta a sua postura, mas a idéia já bem disseminada de que liturgias mais estruturadas alienem os jovens e os simples, me soa como um pouco de condescendência, de subestimação da capacidade intelectual e do empenho em aprender, desses grupos.

Quanto ao culto da igreja primitiva, eu creio que uma boa pesquisa vá apontar, em primeiro lugar, que não existia muita uniformidade quanto à liturgia. Em segundo, que mesmo onde ela era simples, o culto cristão jamais foi algo tão prosaico quanto uma rodinha, uma Bíblia e um violão com uma Santa-Ceia-lanchinho no final. E o que predominou, no fim das contas, nos primeiros séculos, foi uma adaptação da Liturgia da Sinagoga (não mais do Templo) ao culto cristão.

Certamente foi uma simplificação, se compararmos com a complexidade da Liturgia do Templo, e das liturgias pagãs dos povos que circundavam os primeiros cristãos. (A ponto destes julgarem que os cristãos fossem ateus, tamanha a relativa falta-de-cerimônias). Mas mesmo assim, não podemos dizer que o culto cristão fosse algo prosaico e completamente extemporâneo como uma roda de amigos em torno da fogueira com um violão.

É certo que ao longo dos séculos as formas foram se cristalizando, se estilizando, se ritualizando. O lavar das mãos antes de preparar a Eucaristia virou o ritual do Lavabo. O acender das velas na Vigília de Páscoa tornou-se, a partir de um ato utilitário para um ofício na escuridão da madrugada, na Bênção do Fogo Novo e na procissão das luzes para dentro da igreja.

É certo que a preocupação não deve ser com as formas em si mesmas, mas com o que elas comunicam, se é que comunicam. Há trabalho de docência a fazer aí!

Quanto à já antiga dicotomia entre o "clericalismo" protestante e o sacerdócio universal dos santos, creio que seja uma celeuma desnecessária.

O sacerdócio católico tem o ministro como necessário para a consecução de certas bênçãos e dos Sacramentos. O padre é, de certa forma, um mediador necessário entre homem e Deus.

No protestantismo, a questão é de ordem, de organização da Igreja. Para que não haja desordem, Deus, por meio da Igreja, vocaciona alguns para serem despenseiros de seus mistérios, de seus meios de graça (diversidade de dons etc.). Não se impede, com isso, de forma alguma o acesso do fiel, por meio do sumo sacerdócio de Cristo, aos meios de graça. Mas para que haja paz e ordem na (dentro da) Igreja, reserva-se certas funções àqueles que sejam especialmente vocacionados e preparados para elas.

(a questão da possibilidade/validade de um "leigo" ministrar a Eucaristia em um contexto extra-"igreja-instituição", como em reuniões familiares, por exemplo, é algo para os acadêmicos debaterem, à luz da doutrina do sacerdócio universal!)

(E é bastante curioso que o Cristianismo seja quase unânime quanto à possibilidade de um leigo/"leigo" batizar, em casos onde um ministro/sacerdote esteja fora de alcance...)

Então não, não creio que seja "resquício" ou "saudade de Roma", mas algo que já vemos presente, ainda que incipiente, na própria Igreja dos tempos apostólicos.

E quanto ao sinal da cruz, aprendi com os luteranos (que ninguém diga que foi dos anglo-católicos pró-papistas). Mas já vi em muito material litúrgico presbiteriano e reformado, sugestões para o uso do referido sinal. E não vejo nada demais nele mesmo, enquanto não seja meio ou objeto de superstição. E ele é, claro, adiáfora, não deve ser causa de obrigar a consciência de ninguém.

Abraços!

2 comentários:

HS disse...

Olá Eduardo,
É interessante e ajuda muito quando os aspectos de uma liturgia mais elaborada ( não necessariamente complexa!) acontece no decorrer da formação da nova comunidade. CONCORDO plenamente, vai ter um grupo contra, outra a favor e aqueles que estarão abertos ao ensinos e ao que for apresentado. O apreço a luturgia não se faz por meio de hinos ou corinhos e sim da compreensibilidade do que está acontecendo e porque acontece/se faz!
Aonde estou atualmente não foi ( com certeza) formado nesta base, pelo que percebi foi mais para "neo-pentecostalismo" do que para "reformados" sua formação litúrgica.
O que fazer ou tenho feito? Aos poucos tenho introduzido novos elementos, aprimorados outros, diminuidos alguns que julgo serem secundários, paralelamente mantendo(se possível) o que estavam acostumados.
Não se muda anos de prática em seis meses, talvez esse seja um dos grandes erros de alguns colegas que partem para o radicalismo de que Liturgia Reformada deva ser implantada na "marra" aonde ela quase não existia! Aonde dá isto ? Confusão e divisão dentro da igreja.
ACREDITO que pelo ensino, paciência e sabedoria, todos dados por Deus, é possível aprimorar sem ASSUSTAR ninguém, ao contrário, levando a igreja a apreciar algo que até mesmo desconheciam!
Há sempre PAZ em Cristo!

Eduardo H. Chagas disse...

Rev. Hélio,

Acho que o ponto que mais precisa ser reforçado é justamente este que o senhor descreveu: O apreço a luturgia não se faz por meio de hinos ou corinhos e sim da compreensibilidade do que está acontecendo e porque acontece/se faz!

Uma liturgia mais elaborada não exige a exclusividade da hinódia antiga, nem preclui uso o cancioneiro moderno! Evitar uma batalha de gostos musicais, além de pastoralmente são, permite que empreguemos nossa energia no que realmente importa: ensinar ao povo "por que fazemos o que fazemos todo domingo", para que assim eles possam entender e aprender a amar o culto, que é a nossa identidade. (afinal, lex orandi, lex credendi, lex vivendi: aquilo que nós oramos, a forma com que nós cultuamos, é aquilo que nós cremos, e aquilo que nós vivemos -- se cultuarmos como neopentecostais ou evangélicos "genéricos", é assim que nós creremos e viveremos).

E, na minha experiência, dar uma identidade para o povo ajuda, e muito, a criar um sentimento de coesão, de pertença ao Corpo de Cristo. Não se trata de sectarismo, mas de saber o nosso lugar nesse Corpo, que órgão afinal somos nós, e assim cumprirmos melhor a nossa função vital!

A chave de tudo, é claro, é a docência, temperada com muito amor pastoral, e um trabalho bem gradual. Afinal, nosso papel é servir a Igreja, e não chegar empurrando as coisas goela abaixo com uma marreta!

Abração!