quinta-feira, 21 de março de 2024

Por que “Domingo de Ramos e Paixão do Senhor”, e não apenas “Domingo de Ramos”?


 Originalmente publicado em Discipleship Ministries – United MethodistChurch, 20 de abril de 2011.

 Trad. Eduardo H. Chagas

 

Um artigo de blog da semana passada em Christian Century, “Against Passion Sunday” (“Contra o Domingo da Paixão”), provocou uma variedade de respostas à prática atual de se celebrar o último domingo na Quaresma como Domingo de Ramos/Paixão do Senhor.

Muitos se lembram de que estes dois acontecimentos nem sempre foram parte da mesma data. Suas memórias estão corretas. Antes do Concílio Vaticano II, era costumeiro ler a narrativa da Paixão no domingo anterior, e então celebrar o Domingo de Ramos como uma data autônoma, para dar início à Semana Santa. Porém, a partir da publicação do lecionário trienal católico romano em 1969, seguido pelos projetos ecumênicos de calendário e lecionário trienal, que resultaram no Lecionário Comum (1983) e no Lecionário Comum Revisado (1992), isso mudou.

De alguma forma, as pessoas chegaram à noção de que a razão primeira para essa mudança seria uma preocupação de que as pessoas não compareceriam ao culto da Sexta-Feira Santa, em que ouviriam a narrativa completa da Paixão. Essa baixa frequência, pensou-se, fez com que “o pessoal do lecionário”, por uma questão de conveniência, incluiu a narrativa da Paixão no Domingo de Ramos, para que mais pessoas tivessem a chance de ouvi-la.

Dada a variedade de pessoas que repetem essa afirmação, a história aparentemente viralizou em vários grupos.

Eu faço parte do “pessoal do lecionário”, fui um dos dois representantes da Igreja Metodista Unida na Consultation on Common Texts (CCT), que criou e continua a dar suporte ao Lecionário Comum Revisado. Atualmente sirvo como secretário da CCT. E como alguém do “pessoal do lecionário”, posso afirmar que não foi esse o porquê dos meus antecessores terem feito esta opção, de modo nenhum.

O que estava em discussão era resgatar uma prática cristã antiga, não apenas desse domingo, mas da própria Quaresma, um resgate que fazia parte de um conjunto de descobertas dos estudiosos de liturgia e ecumenismo a partir do século XIX.

O lecionário trienal romano (OLM, na sigla em latim) e o calendário litúrgico revisado produzidos pelas reformas do Vaticano II foram o primeiro resultado desse resgate da Quaresma e da Semana Santa.

O resgate da Quaresma não tem a ver apenas com sincronizar nossos calendários com os antigos. Ao contrário, o objetivo era resgatar a missão da Igreja de discipular pessoas no caminho de Jesus, e realinhar nossas práticas de culto para apoiar essa missão.

O propósito de discipulado foi obscurecido pelas inovações medievais no calendário e nos lecionários, que se seguiram ao fim do que era o principal meio da Igreja oferecer esse discipulado intensivo – o catecumenato de (pelo menos!) três anos. A Quaresma era a “reta final” da preparação dos candidatos ao Batismo, depois de três anos aprendendo como orar, como ouvir e aprender das Escrituras, como cuidar dos pobres, dos enfermos e dos órfãos, como cuidar e defender as necessidades dos idosos, como vencer práticas viciantes em suas vidas, entre outras coisas.

Todo esse treinamento continuado assegurava que os candidatos ao Batismo poderiam responder às perguntas batismais com profunda integridade. Essas perguntas, em sua forma mais antiga, eram: “Você renuncia a Satanás e a todas as suas obras? Você confessa a Jesus Cristo como Senhor e Salvador?” e, a partir do Credo Apostólico, “Você se entrega ao cuidado do Deus Triúno e da Igreja que confessa e vive pela graça e poder desse Deus?”. A nossa aliança e votos batismais têm origem nesses votos e práticas antigos.

Mas quando o catecumenato de três anos foi comprimido nesses quarenta dias (na Síria, já em 387), e depois praticamente desapareceu por todo o antigo Império Romano já no século VI, substituído por uma mistura de práticas posteriormente chamadas de “Confirmação”, ou “Crisma”, com foco mais em doutrina do que em viver no caminho de Jesus, as semanas da Quaresma passaram a ser usadas para outro propósito – uma temporada de jejum e penitência com lembretes constantes do sofrimento de Jesus pelo caminho. Essa era a realidade praticamente universal no Ocidente pelo século VIII. Em outras palavras, a Quaresma não tinha mais a ver com discipular as pessoas no caminho de Jesus, mas sim disciplinar a nós mesmos pelos nossos pecados, ainda que apenas nesses quarenta dias.

Foi essa prática medieval da Quaresma, desconectada de qualquer esforço sério de discipular os novos convertidos no caminho de Jesus, que continuou a moldar os lecionários e práticas quaresmais no Ocidente até o Concílio Vaticano II.

Juntamente com a publicação do OLM pela Igreja Católica Romana (1969) e o trabalho ecumênico subsequente (com a participação de católicos) no Lecionário Comum (1983) e Lecionário Comum Revisado (1992), também começou um esforço ecumênico sério de resgatar as práticas do catecumenato. Aqui também Roma foi, de certa forma, pioneira, particularmente com a publicação de seu Ritual da Iniciação Cristã de Adultos e muitos recursos de apoio, pelo mundo todo. O trabalho ecumênico sobre esta plataforma continuou na América do Norte com a North American Association for the Cathecumenate (NAAC). Para os metodistas, a coroa desses esforços é o maravilhoso e prático livro de Daniel Benedict, Come to the Waters.

Como resultado de todo esse trabalho, por todos esses cristãos mundo afora, por todo esse tempo, é aqui que estamos – com o resgate de um Domingo de Ramos/Paixão como a dobradiça que une a Quaresma resgatada e uma Semana Santa mais intensa.

A Quaresma é um período de quarenta dias de jejum e preparação espiritual, cuja intenção é auxiliar as comunidades a acompanhar os candidatos ao Batismo durante sua “reta final”, em práticas, ritos e disciplinas essenciais à vida no caminho de Jesus. A Quaresma propriamente dita começa na Quarta-Feira de Cinzas, e se encerra no Domingo de Ramos/Paixão do Senhor, o dia que marca o início da Semana Santa.

A Semana Santa é um tempo mais intenso de jejum, leitura e oração, no qual damos especial atenção aos últimos dias, sofrimento e execução de Jesus. As leituras do Lecionário Comum Revisado para cada dia da semana (encontradas no United Methodist Book of Worship, no LCR online, na Vanderbilt Divinity Library, e no site de DiscipleshipMinistries da United Methodist Church) nos oferecem leituras dos Cânticos do Servo Sofredor de Isaías, de Hebreus e da última semana de Jesus em Jerusalém (de segunda a quarta-feira), e então para os cultos do Tríduo Pascal, os “três grandes dias” – Quinta-Feira Santa (foco no lava-pés e no novo mandamento, e menos na instituição da Ceia do Senhor); Sexta-Feira Santa (a Paixão segundo o Evangelho de João, não as Sete Palavras da Cruz, que são uma prática devocional medieval); o Sábado de Aleluia (um culto ou vigília de silêncio, leituras e oração) e a Grande Vigília Pascal (sábado após o pôr-do-sol).

A Grande Vigília é o primeiro culto da Páscoa, com tudo o que tem direito, fogo, palavra, banho e refeição. Historicamente, é na Vigília que os candidatos, que nesta Quaresma completam seu ciclo de três anos de preparação, são batizados – e hoje, também em muitas igrejas, incluindo a nossa! Depois de seu Batismo, eles receberiam (na verdade, presenciariam) pela primeira vez a Santa Ceia.

Assim, a Quaresma e a Semana Santa têm a ver com discipular pessoas no caminho de Jesus. Durante a Quaresma, focamos nas histórias e práticas centrais do ministério de Jesus. Durante a Semana Santa, enfocamos intensamente seus últimos dias, sua execução, seu sepultamento e, afinal, com a Grande Vigília, sua ressurreição.

A Páscoa inaugura outra “semana de semanas” (cinquenta dias) dedicados a preparar toda a Igreja, incluindo os recém-batizados, para compreender nosso ensino e ritual (“mistagogia”), mas, mais importante, para começar a discernir e assumir ministérios, conforme os dons do Espírito se manifestam no corpo de Cristo, culminando com o seu comissionamento no Pentecostes, o fim da temporada pascal.

Sou grato porque estas perguntas estão sendo feitas a respeito da “invenção” (na verdade, resgate) do Domingo de Ramos/Paixão do Senhor.

Espero que todos possamos ver quão mais ricas nossas vidas podem ser – não apenas no culto, mas especialmente em nosso discipulado junto a Jesus – se assumirmos as tarefas a que esse aparentemente pequeno (embora talvez desconfortável) resgate da prática antiga nos convida.

2 comentários:

Sandro Xavier disse...

Muito bom, Rev. Chagas.

Resgatar a história dá mais sentido ao nosso presente.

Deus continue te abençoando.

SX

Otoniel disse...

Parabéns, suas informaçoes são sempre muito ricas