quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Nós precisamos de rituais altamente formais para tornar a vida mais democrática

Um jantar formal em Magdalene College, Cambridge. Foto de Martin Parr/Magnum.

 Por Antone Martinho-Truswell.

Trad. Eduardo Henrique Chagas.


We need highly formal rituals in order to make life more democratic originalmente publicado em Aeon, 29 de abril de 2020. 

Antone Martinho-Truswell é deão e Chefe de Casa da Graduate House da Faculdade St. Paul’s da Universidade de Sydney, Austrália, e pesquisador associado do Departamento de Zoologia da Universidade de Oxford. Sua pesquisa atual concentra-se em como pássaros aprendem conceitos e processam informações. Ele mora em Sydney, Austrália. 

Benedictus, benedicat, per Jesum Christum, Dominum Nostrum. 
Amen. 

 Sentem-se, por favor. É hora do jantar em St. Paul’s College, Sydney, onde sou o deão e Chefe de Casa da Casa dos Pós-Graduandos. Os membros da Mesa Alta, trajando becas acadêmicas, entraram em processional no refeitório, dirigindo-se a uma mesa posta com candelabros e prataria do acervo da faculdade, cada lugar posto com talheres e copos. Os alunos, também de beca, levantam-se de seus lugares para saudar a Mesa Alta, e permanecem de pé até que o presidente termine a oração em latim (esta é a versão curta – uma mais completa é reservada para datas especiais). Agora que todos estão sentados, uma refeição de três pratos é servida, acompanhada de poesia, música, avisos e diversão bem-vestida. Vinho do Porto é servido. Uma oração final é dita após o jantar, então todos se retiram para o salão comunal para um café (ou mais vinho do Porto) e bate-papo. Os homens estão de gravatas. As mulheres, igualmente bem vestidas. Os participantes fazem reverência à Mesa Alta ao deixarem a mesa, e a Mesa Alta também se curva ao deixar o jantar. 

Este não é, de maneira alguma, um ritual inédito. Por onde quer que o Império Britânico tenha plantado sua bandeira, suas duas grandes universidades de Oxford e Cambridge espalharam seu modelo de universidade colegiada, e assim, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Estados Unidos todos têm suas faculdades, cada um com seu modo tradicional de jantar e viver. St. Paul’s é a faculdade mais antiga da Austrália, mas é diferente das demais (e daquelas no Reino Unido) em um aspecto significativo. St. Paul’s abriga duas comunidades – graduandos e pós-graduandos – cada uma com seus edifícios, salões de jantar, salões comunais e liderança; cada uma é praticamente uma faculdade em si, mas unidas em muitas iniciativas. A comunidade dos graduandos foi fundada em 1856, e a Casa dos Pós-Graduandos, que eu lidero, em 2019. Ainda assim, a despeito desta diferença de idade, a descrição acima vale para os jantares de ambas as comunidades, toda semana. 

Quando eu assumi como deão da Casa dos Pós-Graduandos, a Casa nem existia, era uma construção incompleta e uma ideia. Minha missão era recrutar alunos e professores, encher os prédios de gente, preparar a liderança estudantil e projetar e definir a cultura e as práticas de uma nova faculdade-dentro-da-faculdade. 

Mesmo sem pedir, não me faltaram conselhos. Os sentimentos mais comuns que ouvi não surpreendem: “Uma nova faculdade pode ser moderna”, “vocês não precisam de becas”, “vocês não precisam de jantares formais”, “pós-graduandos de uma nova instituição vão preferir a informalidade!”. 

Nós usamos beca. Nos jantares formais. Não é informal. Não é “moderno”. 

Meu ponto-de-vista não é popular. Creio, firme e invariavelmente, que a vida no século XXI é informal demais, desprovida demais de ritual, e que deveríamos encorajar e criar mais formalidade desnecessária. Formalidade, ritual e cerimônia – não uma acessibilidade casual – estão entre os meios mais eficazes de tornar o mundo e suas instituições mais inclusivos e igualitários. Precisamos de muito mais formalidade nas nossas vidas. 

O século passado foi bom para as liberdades individuais – em quase todos os campos. Essa liberalização por atacado incluiu a liberdade dos indivíduos se vestirem, jantarem e falarem da forma que quisessem. E como eles querem é invariavelmente “casual” “sossegado”, “sem muita complicação”, “sem muito preciosismo”, “despretensioso”, “sem ostentação”, ou, como ouvi outro dia, “nada muito bougie” (de “burguês”). Em suma, informal. O conforto é rei no mundo moderno, e o conforto é a desculpa escolhida para a evaporação da formalidade na vida cotidiana. 

Conquanto a formalidade e seus rituais persistam em pequenas bolhas, eles só o fazem onde são reforçados e protegidos por estruturas protetoras elaboradas. Em geral (embora cada vez menos) as cerimônias de governo permanecem algo formais. Com cada vez mais exceções, casamentos e funerais se apegam a tradições formais. A linha High Church [do anglicanismo, N.T.] se posicionou como o último refúgio da prática formal – uma reivindicação que seria inócua se a linha Low Church não tivesse abolido com tanta eficácia os sons, e cheiros, e hinos, e cerimonial, para tentar ser atraente aos paroquianos que querem um culto que seja “sem muita complicação”. 

O conforto venceu, e a maior parte da formalidade se foi. Mas a liberdade da informalidade tem um custo. A formalidade é uma barreira contra alguns dos impulsos mais desagradáveis da humanidade, e age como uma vacina contra nossa tendência mais perigosa: formar grupos dos que estão “por dentro” e dos que estão “por fora”. 

Não há nada que você, eu, o Papa ou as Nações Unidas poderíamos fazer para evitar que os seres humanos formem clubes, inventando ou destacando traços de diferença, e levantando cercas e currais para manter um grupo unido ao mesmo tempo em que deixa os “outros” para fora. Somos primatas tribais com um cérebro programado para enxergar exageradamente nossa lealdade a nosso pequeno bando enquanto fazemos barricadas contra outros, que se distinguem de nós por diferenças cada vez mais ínfimas. Indivíduos conseguem, com grande esforço, suprimir conscientemente essa parte desagradável de nossa programação, mas populações em geral não conseguem

Grupos podem ser formar em torno de qualquer traço distintivo, desde os mais inofensivos, como times esportivos, escolas frequentadas ou livros preferidos, até os mais nefastos, como raça, classe ou sexo. Cada pessoa consegue suprimir para si algumas marcas de diferença enquanto se agarra a outras – e nenhuma consegue se livrar de todas elas. 

Este vírus mental pode ser incurável, mas existe uma vacina: formalidade. A formalidade nos dá algo inofensivo em torno do que formar um grupo “dos que estão dentro”: a saber, o conhecimento das regras dessa formalidade específica, com seus próprios testes de membresia e regras de iniciação. 

“Ah, sim, o dress code é um pouco difícil de entender... Veja só, ele é baseado em padrões edwardianos, claro, então ‘semi-formal’ na verdade significa black tie! Não, não se preocupe, é esquisito, sim...”. 

A oportunidade de ser um pedante sobre as regras de formalidade dá à pessoa algo para fazer em vez de se agrupar em torno de traços mais excludentes, como que escola cara ela frequentou. Mais importante, as regras de formalidade são, no fim das contas, acessíveis a todos. Qualquer um pode aprender a etiqueta e colocar a gravata, e então ser parte do cada vez maior e mais diverso grupo dos “por dentro” que praticam a formalidade do evento. 

As companhias de ofício da Cidade de Londres são algumas das instituições mais formais e tradicionais do Reino Unido, hoje; jantares formais, cerimônias em trajes Tudor (ou falso-Tudor), e eleições extremamente complicadas são coisa de rotina para eles. E apesar dos trajes finos e da antiguidade, elas não são – nem jamais foram – aristocráticas. Mais de um século atrás, elas já estavam associadas com plebeus em ascensão social, tanto que Gilbert e Sullivan fizeram graça com o desdém da Câmara dos Lordes pelo Conselho Comum (composto por membros de várias companhias de ofício) em sua ópera cômica Iolanthe (1882). As companhias surgiram como associações de trabalhadores, e conservam sua ligação de classe, mas são organizações formais, tradicionais, porque isso ajuda a unir seus membros, apesar das diferenças, fazendo-os sentirem-se um só. 

Este é um padrão comum. Conquanto os clubes de cavalheiros de Londres sejam tradicionais e bem-vestidos, eles são largamente desprovidos de cerimonial; pelo contrário, são lugares luxuosos onde seus membros relaxam comendo, bebendo e observando desdenhosamente as credenciais da classe alta, desde qual é a sílaba tônica em “patina”, a por que um cavalheiro não deve possuir facas de peixe. Enquanto isso, clubes com raízes na classe trabalhadora, como o Knights of Columbus ou a Maçonaria, se paramentam todos em cerimoniais formais e ritual. Os que já são poderosos podem se dar ao luxo de não criar muita complicação. Para os que ainda estão tentando subir na vida, ou para os oprimidos, a formalidade oferece um sentido inigualável de pertencimento a um corpo maior. 

Universidades e faculdades outrora sabiam bem disso. Elas ainda continuam sendo algumas das únicas instituições que usam a formalidade a seu favor, embora muitas vezes vacilantes e com ressentimento. Eu morei e trabalhei em várias das faculdades de Oxford antes de me mudar para a Austrália, e observei enquanto vários membros da liderança tentaram – às vezes com sucesso, às vezes não – eliminar pequenos elementos de formalidade saudável, quando sentiam que o tempo era oportuno. E assim, caiu o quarto prato da refeição, mas a segunda sobremesa foi preservada. Outra noite da semana se tornou informal, mas o domingo ainda era black tie. Eles tiram lascas da tradição, esquecendo-se que, para os alunos, pesquisadores visitantes e novos acadêmicos, são essas coisas que oferecem êxtase e deleite.

Em 2019, foi um ato de fortaleza comparecer diante de 100 alunos de pós-graduação recém-matriculados – a maioria australianos, pouquíssimos com qualquer experiência de uma faculdade histórica – e insistir que neste prédio moderno, novo em folha, em nosso primeiríssimo jantar, nós vestiríamos trajes acadêmicos, faríamos a oração em latim e passaríamos os decanters pela esquerda. Mais difícil ainda foi dizer o mesmo para uma dúzia de acadêmicos ocupados e calejados que se uniram a nós. Mas foi a escolha correta, e a faculdade ganhou com isso. Nesta universidade moderna, meus alunos e professores vêm dos mais variados contextos políticos, religiosos, sociais e econômicos que se possa imaginar; eles não têm nada extrínseco em que crer juntos. A faculdade lhes dá algo em que acreditar como um todo. 

A faculdade precisa do ritual, da tradição, dos anacronismos e dos sussurros do numinoso, para unir esta diversidade. Não para nivelá-la, mas para uni-la em verdadeiro engajamento. Qualquer prédio de apartamentos pode se encher com moradores diversos, que educadamente acenam uns para os outros nos corredores, e então vão cuidar de suas vidas. É preciso uma faculdade antiga, formal, tradicional, cheia de rituais, para fazê-los sentir que pertencem a uma só categoria – mesmo que a faculdade antiga tenha apenas um ano de idade. 

Benedicto, benedicatur, per Jesum Christum, Dominum Nostrum. 
Amen. 

PS: Esta ideia foi concebida e escrita no início de 2020, em um tempo quando o Covid-19 era um sussurro abafado. Ao ler este texto agora, quando o cerimonial e o estar juntos estão corretamente suspensos pelo bem da saúde global, a sensação é de ler relatos de um outro mundo. Mas espero que esta crise, que, por trás da crise médica, é uma crise social, nos forneça uma chance de refletir em como interagimos, e que a comunidade global, ao retomar seus negócios habituais, abrace a oportunidade de restaurar nossas instituições perdidas de formalidade e cerimônia. Em suma, espero que saiamos da quarentena vestindo nossa roupa-de-ver-Deus, tocando os sinos, acendendo velas e queimando incenso. 

29 de abril de 2020.



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